Folha de S. Paulo


Reação da população à morte de Fidel expõe choque geracional em Cuba

"Quando eu era jovem amava Fidel, admirava como homem, bonito e corajoso, e por suas ideias", diz a turista argentina Judith Malzon, 62, a uma jovem garçonete cubana de um restaurante praiano de Havana. A garota sorri e diz, com algo de picardia: "sim, minha mãe também".

Perguntada depois pela Folha, a garçonete Veronica (não quis dizer o sobrenome), 24, comenta: "a figura de Fidel é um mito para a geração de nossos pais. Não é que não concorde com a ideologia, só desejava que esse país fosse mais parecido aos outros".

Parecido em que? "Com mais acesso à internet, séries, essas coisas", responde.

Enric Marti/associated press
Pessoas prestam última homenagem a Fidel Castro quando carro com urna contendo cinzas deixa Havana
Pessoas prestam homenagem a Fidel Castro enquanto carro com urna contendo cinzas deixa Havana

Quando se conversa com cubanos sobre Fidel, o assunto varia de acordo com a geração. Os mais velhos se aferram, contra ou a favor, a seu legado político e revolucionário; os mais novos dizem não amá-lo nem odiá-lo, mas a maioria acaba concluindo com variações da frase: "só queria que fossemos um país mais moderno".

"Nos seus dias de auge, não tinha quem não admirasse Fidel, mesmo quem era contra o regime. Todo mundo admirava, parava para vê-lo falar. O que temos agora é uma sombra daquilo. Mas melhor isso do que entregarmo-nos aos gringos", conta Julio, motorista de ônibus que almoçava numa das poucas praças de Havana com acesso à internet.

Na longa cerimônia da noite de terça (29), na Praça da Revolução, Aurora Díaz, 69, se dizia emocionada, "mas também nostálgica".

Envolta numa bandeira com o rosto de um Fidel jovem, disse: "Eu ouvi dezenas de seus discursos, nunca me importei com o tamanho deles, não me cansava de ouvir sua voz. Hoje falaram quatro presidentes, e já estou exausta. Eles querem repetir seu estilo, mas não conseguem. Ninguém é como ele era", disse, referindo-se às intervenções de Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia), Sánchez Cerén (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua).

Já de um grupo de jovens vindo da província, as reações eram diferentes. "Quando ouço meus pais e meus avós falarem da Revolução, acho bonito, mas parece algo muito longe no tempo, que temos que preservar nossa história. Mas queria muito era poder ver os jogos do Barcelona ao vivo", ri Ramón, 17.

Nesta quarta (30), feriado escolar pelo luto, Havana teve um dia tranquilo. Numa quadra esportiva, meninos brincavam com tacos de beisebol. "Minha mãe pediu para não falar com estrangeiros, que a ilha está muito cheia de jornalistas e isso pode nos causar problemas", disse Brian, 14.

Apesar do banimento do álcool, das festas e dos eventos esportivos por uma semana, a reportagem não teve dificuldade em encontrar lugares que vendiam "tragos".

"Dá para tomar uma cerveja aqui?", pergunto, num bar a algumas quadras da praça da Revolução, após o ato, na madrugada de quarta (30). O garçom pergunta se sou estrangeira e, após ouvir a confirmação, aponta para uma mesa do fundo, onde havia três mesas com gente bebendo, cubanos e forasteiros.

Já na região dos hotéis turísticos, nem esse cuidado parecia necessário. "Estamos vendendo discretamente", disse o garçom de um bar do bairro de Playa, que apesar do jeito cauteloso servia mojitos a um grupo de italianos.

"Não vai mudar nada. Ele já estava afastado. Estou com mais medo de [Donald] Trump ser um retrocesso ao que já conquistamos com Obama", diz Leandro Ortíz, vendedor de rua. "Acho que o embargo tem de acabar, mas que temos que continuar com os ideais da Revolução e continuarmos independentes dos EUA."

'SEXTO'

O artista, grafiteiro e ativista Daniel Maldonado, 32, conhecido como "Sexto", foi preso após fazer intervenções em alguns muros de Havana após a morte de Fidel.

Sua mãe, María Victoria, disse que oficiais chegaram "sem ordem de detenção e o levaram de forma violenta".

Os grafites de Sexto diziam apenas "se fue" (foi-se), mas a provocação foi suficiente para que ele fosse novamente detido. Em 2014, Maldonado havia sido preso por "desacato às figuras de Fidel e de Raúl Castro", por uma performance num parque de Havana, em que pintou dois porcos com uniforme verde, referindo-se aos irmãos.

Não houve julgamento, mas o artista só foi liberado dez meses depois.

Agora, Maldonado foi levado à Villa Marista, prisão onde se interrogam e encarceram dissidentes políticos, e depois para uma prisão em Guanabacoa, na capital.

Nesta quarta, teve início a jornada de 900 km em três dias das cinzas de Fidel até o local onde serão sepultadas, em Santiago de Cuba (leste).


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