Folha de S. Paulo


Da guerrilha às décadas no poder, Fidel moldou a imagem de um país

REUTERS/Claudia Daut/File Photo
Presidente de Cuba Fidel Castro ouvindo pronunciamento durante a parada do primeiro de maio na praça da revolução em Havana. 2005
O cubano Fidel Castro em foto de 2005

Começou neste sábado (26), com a morte de Fidel Castro Ruz, aos 90 anos, a contagem regressiva para se saber se vingará ou não uma de suas frases mais célebres: "A História me absolverá''.

Só mesmo a História para emitir um julgamento menos emocional de quem foi o governante que ficou mais tempo no poder na América Latina, até que foi forçado a se afastar em 2006, por motivo de saúde. Fidel foi santo ou demônio, sem meios-termos, conforme a posição ideológica de quem o julgava.

A frase completa é algo mais longa: "Podem condenar-me, não importa, a História me absolverá''. Foi pronunciada por Fidel como advogado dele próprio, durante o julgamento, em 1953, dos militantes que tentaram ocupar o quartel Moncada, um dos principais do Exército do ditador Fulgencio Batista.

A primeira parte da frase cumpriu-se: Fidel foi condenado a 15 anos de prisão, que deveria cumprir no isolamento da ilha de Pinos. Anistiado em 1955, tratou de apressar a absolvição pela História, que a seu ver seria representada pela derrubada de Batista.

Cumpriu-se igualmente esta segunda parte.

"Cinco anos, cinco meses e cinco dias depois do assalto ao Moncada, triunfou a Revolução em Cuba. Um recorde verdadeiramente impressionante, se se levar em conta que transcorreram para seus dirigentes quase dois anos de cárcere, mais de ano e meio de exílio e 25 meses de guerra'', diria Fidel no seu informe ao 1º Congresso do Partido Comunista Cubano, em dezembro de 1975.

Mas começaria, então, um novo julgamento, sobre méritos e defeitos da revolução triunfante e, por extensão, do homem que a encarnava e confundiu sua história pessoal com a de seu país.

"Convertido em lenda antes de cumprir 33 anos e líder máximo desde então, a presença de Castro, tanto física como simbólica, foi elemento-chave em todos os programas revolucionários empreendidos na nova Cuba'', escreveu o acadêmico norte-americano Richard Fagen.

Começou também um debate, até hoje inconclusivo, sobre a ideologia de Fidel Castro. Era comunista desde sempre, e escondeu o fato para não alienar aliados do movimento anti-Batista, ou era apenas um libertário?
O primeiro documento político produzido por Fidel sugere a segunda alternativa.

O manifesto com que ele e seus 165 homens mal equipados, na maioria estudantes, se lançaram ao ataque ao Moncada é pouco radical.

Pedia até a volta à Constituição de 1940, documento liberal como quase todas as Constituições latino-americanas. Previa regras que o capitalismo, pelo menos o mais moderno, nem de longe rejeita, como a participação dos trabalhadores nos lucros das grandes empresas (assim mesmo limitada a 30%).

O suficiente para justificar a análise que fez o historiador britânico Hugh Thomas, em seu livro "A Revolução Cubana'': "Castro embarcou no ataque ao Moncada sem uma ideologia verdadeiramente elaborada, somente com o anseio de depor o tirano Batista e de acabar com a corrompida sociedade da velha Cuba''.

Mesmo depois de iniciada a guerra de guerrilha contra Batista, Fidel ainda insistiria, em entrevista ao jornalista norte-americano Herbert Matthews ("The New York Times''), que foi ouvi-lo em plena serra Maestra, o quartel-general dos guerrilheiros: "Estamos lutando por uma Cuba democrática e pelo fim da ditadura''.

Até depois da vitória, na sua primeira visita aos EUA (maio de 1959), o tom era similar, sempre em entrevista ao "The New York Times'':

"Digo de maneira clara e definitiva que nós não somos comunistas. As portas estão abertas aos investimentos privados que contribuam para o desenvolvimento da indústria em Cuba."

Só assumiria o comunismo no fim de 1961, ao som de uma canção que se tornou popularíssima à época: "Palante, palante/somos socialistas, somos comunistas/a quien no les guste/que tomen purgante'' (palante é uma abreviação de "para adelante'', para a frente, em espanhol).

A decisão foi tomada praticamente três anos depois de vitoriosa a revolução e de uma sucessão de atos hostis de parte do governo norte-americano, a saber:

1 - O bloqueio comercial decretado pelo governo do presidente Dwight Eisenhower (outubro de 60).

2 - O rompimento de relações diplomáticas com os EUA, no ano seguinte.

3 - A frustrada tentativa de invasão de Cuba por contrarrevolucionários financiados e treinados pelos EUA (abril de 1961).

Paradoxo da história: um comunista tardio transformou-se, com o desaparecimento da União Soviética e do charme do marxismo, no "último dinossauro marxista'', na definição a ele aplicada pelo conservador jornal francês "Le Figaro'', quando Fidel fez sua primeira visita à França, em 1995.

De todo modo, não se fez comunista pelo método mais usual, que era o de aderir ao Partido Comunista. Ao contrário, o Partido Comunista de Cuba (originalmente Partido Socialista Popular) é que aderiu a Fidel.

Ou, como escreve a chilena Marta Harnecker, militante marxista: ''Pela primeira vez na história do movimento, um partido comunista aceitava outra direção política na luta pelo socialismo''.

O CARISMA

Na verdade, o PC cubano aceitou a direção de um homem sobre o qual o único consenso, entre admiradores e inimigos, é o de que possuía extraordinário carisma, no sentido em que o filósofo alemão Max Weber (1864-1920) emprega o termo.

"Carisma implica muito mais do que popularidade. O líder carismático é percebido por seus seguidores como dotado de poderes ou qualidades sobre-humanas ou, pelo menos, excepcionais. E ele se percebe a si próprio como 'eleito' do alto para cumprir uma missão. Ambos os requisitos se cumpriram em Cuba'', escreve Richard Fagen.

Fidel associou o carisma a uma inquietação permanente, que o levou, aos 20 anos, a participar de uma frustrada tentativa de invadir a República Dominicana para depor o ditador Rafael Trujillo.

Ou, no ano seguinte (1948), a presenciar ou participar (as versões variam) do chamado "bogotazo'', revolta estudantil na capital colombiana que foi o ponto de partida de uma guerra civil que, a rigor, se mantém até hoje.

Era a faceta político-revolucionária de um jovem que, como adolescente, preferia queimar as energias nos campos de beisebol, atletismo e basquete, como aluno da Escola Preparatória Belén, dirigida pelos jesuítas e a preferida da burguesia cubana.

Era, então, o "pelota de churre'' ("bola suja''), pelo desprezo às roupas cuidadas de seus colegas, o que não o impediu de ser eleito, em 1944, o melhor atleta cubano do curso secundário.

OS EUA, SEMPRE OS EUA

Antes disso, Fidel tivera a sua primeira e fracassada experiência de interlocução com os Estados Unidos.

Aos 14 anos, em 1940, enviou carta ao presidente Franklin Delano Roosevelt, na qual dizia ter 12 anos, cumprimentava-o pela reeleição e pedia uma nota de US$ 10, "porque nunca vi uma nota verde de dez dólares americanos e gostaria de ter uma''.

Nunca recebeu o dinheiro. Ao longo de seus anos no poder, foi, ao contrário, vítima de 33 tentativas de assassinato, parte delas de responsabilidade da CIA, a agência norte-americana de espionagem externa.

Seu antiamericanismo era, pois, fácil de entender. Talvez fosse até característica genética: seu pai, Ángel, espanhol de nascimento, foi para Cuba como integrante do Exército espanhol que enfrentaria o dos Estados Unidos, na guerra pela ilha do Caribe.

Ficou, virou próspero agricultor e gerou seis filhos, dois dos quais (Fidel e seu irmão Raúl, seu sucessor na Presidência) moldaram a história do país nos últimos 57 anos.

Fidel marcaria a história de Cuba não apenas com ações mas também com uma retórica caudalosa, triunfalista.

Ao partir para o exílio no México, após a anistia de 1955, profetizou: "De tais viagens, ou não se tem retorno ou se retorna com a ditadura decapitada aos pés''.

O início do regresso parecia encaminhar-se para a primeira parte da frase, o não retorno. Quase tudo deu errado para os 82 homens que, na madrugada de 25 de novembro de 1956, embarcaram no iate Granma para decapitar a ditadura de Batista.

Primeiro, o iate enfrentou uma sucessão de tempestades, que o afastou do curso e atrasou a data de chegada. Depois, o grupo interno que deveria apoiar o desembarque foi dizimado pelos soldados de Batista.

Não obstante, quando o grupo desembarcou, no dia 2 de dezembro, Fidel voltou a profetizar: "Os dias da ditadura estão contados''.

Estavam. Às 3h da madrugada de 1º de janeiro de 1959, Batista e um grupo de colaboradores fugiram de avião para a vizinha República Dominicana. Uma semana depois, Fidel entrou em Havana e voltou a profetizar:

"Não nos enganemos, acreditando que, daqui para a frente, será mais fácil. Talvez seja mais difícil''.

Acertou outra vez.

Difícil, entre outras razões, porque os revolucionários iniciaram uma autofagia que parecia interminável.

Os primeiros a divergir foram militantes moderados do Movimento 26 de Julho (referência à data do ataque ao Moncada) que, desde o princípio, desconfiaram de que a revolução democratizadora encaminhava-se para uma ditadura comunista.

No dia 19 de outubro, o comandante Hubert Matos, um dos líderes guerrilheiros, escreveu a Fidel, pedindo demissão do comando militar da província de Camaguey e do governo revolucionário.

Acusava o novo governo de "gestar uma traição contra nosso povo e contra a revolução democrática e humanista que havíamos prometido levar adiante desde o poder''. A carta custou a Matos 20 anos de prisão, "sistemáticas perseguições, maus-tratos e torturas'', como ele contaria posteriormente.

O ex-comandante passou a ser, em todos esses 20 anos, um dos símbolos, talvez o maior, de violação aos direitos humanos praticados por uma revolução que Castro jurara, no início, ser "a mais justa e a mais generosa''.
Mas também os comunistas foram imolados, como Aníbal Escalante, o principal líder do partido até que Castro se declarasse comunista e tomasse a agrupação.

Nem o segundo maior emblema da revolução, o médico argentino Ernesto Guevara, o Che, ficou imune às disputas ou de poder ou ideológicas no novo regime.

Che acreditava cegamente que sua missão era levar a revolução socialista a toda a América Latina.

Fidel, a partir do rompimento total com os EUA, dependia fortemente da União Soviética, cuja doutrina oficial era a da "coexistência pacífica'' com o Ocidente.

Em 1964, "já não restavam dúvidas de que ele (Che) e Fidel tinham começado a seguir rumos divergentes. A meta de Fidel era consolidar o bem-estar econômico de Cuba e a sua própria sobrevivência política, e, para isso, ele se dispunha a conciliar. A missão de Che era difundir a revolução socialista. Aproximava-se a hora em que deveria deixar Cuba'', escreve Jon Lee Anderson, em biografia de Guevara.

Três anos depois, Guevara seria morto na Bolívia e, paradoxalmente, Fidel assumiria o papel de propagador da revolução no resto do mundo, ao criar a Olas (Organização Latino-Americana de Solidariedade).

No tom triunfalista de sempre, Fidel dizia: "Um fantasma percorre o continente. É o fantasma da Olas, e esse fantasma produz insônia nos reacionários, imperialistas, esbirros, 'gorilas' e exploradores''. Tinha certa razão. Movimentos guerrilheiros espalharam-se pela América Latina. Mas o fantasma da Olas assombrou também comunistas ortodoxos, parte dos quais boicotou a Olas.

URSS

Em boa medida, a reação de alguns PCs mais ortodoxos respondia à obediência deles à "convivência pacífica'' pregada pela União Soviética. O confronto de posições entre Fidel e a URSS era uma relíquia de sua nunca escondida irritação com o comportamento de Nikita Khruschov, o líder soviético durante a crise dos mísseis em 1962, em geral tido como o momento em que as duas superpotências da época estiveram mais perto do confronto militar.

A crise começou a 15 de outubro de 1962, quando aviões-espiões norte-americanos detectaram rampas de lançamento de mísseis soviéticos em Cuba. O presidente John Kennedy deu prazo para que os russos retirassem os mísseis, o que Khruschov fez. Fidel considerou a decisão "uma capitulação''.

Para Fidel, "a forma como (Khruschov) se comportou durante a crise de outubro foi uma séria afronta''.

Afrontar a "convivência pacífica'' da URSS com o internacionalismo revolucionário da Olas parecia uma resposta à "afronta'' anterior, mas durou pouco.

O bloqueio norte-americano provocou crescente aumento na dependência de Cuba dos recursos enviados pela União Soviética, gerando por extensão uma igualmente crescente cópia do modelo institucional soviético.
Um ano depois da reunião da Olas, Fidel lança uma "ofensiva revolucionária'', que fecha o círculo da estatização da economia.

Até então, só o comércio atacadista e internacional, os bancos e a educação eram 100% estatais. A partir de 1968, todos os demais setores passaram a sê-lo, exceto a agricultura (30% em mãos de pequenos agricultores).

Natural, por isso, que Cuba entrasse em colapso quando a União Soviética começou a ruir, a partir de 1989. Claro que, bem de acordo com a retórica revolucionária, a palavra colapso jamais foi empregada. Preferiu-se o eufemismo "período especial''.

Entre 1989 e 1992, a economia cubana retrocedeu 35%, e o racionamento (em vigor desde o bloqueio norte-americano) tornou-se mais rígido. Aos poucos, a retórica socialista de Fidel começou a parecer contraditória com as medidas de abertura da economia, pelas quais foram permitidas pequenas empresas privadas e legalizada a posse de dólares.

De todo modo, antes, durante e depois do "período especial" (Cuba cresceu quase 10% em 1995), Fidel nunca perdeu a pose e sempre teve tratamento de "superstar" em cada encontro internacional a que comparecia.
Nas cúpulas ibero-americanas, foi o astro principal, para irritação de ex-presidentes como o argentino Carlos Menem e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso.

Conseguiu ser estrela até no território inimigo: em outubro de 1995, teve tratamento de herói em visita ao bairro do Harlem, em Nova York, de população majoritariamente negra.

Ainda se permitiu uma ironia: "Se algum dia os Estados Unidos precisarem de médicos, garanto que temos os melhores. Teria o maior prazer em mandá-los para tratar da população que não pode pagar os hospitais caros daqui".

Uma ironia que corresponde a uma realização, os êxitos no setor de saúde, que nem mesmo os mais ferozes críticos cubanos de Fidel negam. "Cuba não fechou uma só escola, um hospital, um asilo de anciãos, uma creche infantil", gabou-se Fidel em discurso na Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995).

Com o tempo, de todo o modo, a retórica inflamada foi se abrandando, de que o maior exemplo foi dado justamente na Cúpula de Copenhague, quando preferiu o dramaturgo espanhol Calderón de la Barca e recitou: "Toda a vida é sonho e, os sonhos, sonhos são".

Para Fidel Castro Ruz, os sonhos terminaram ontem.


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