Folha de S. Paulo


França pode repetir 'brexit' e Trump, afirma pesquisador

Phillippe Matsas/Flammarion/Divulgação
O geógrafo francês Christophe Guilly, que vê país rachado entre globalizados e periféricos
O geógrafo francês Christophe Guilly, que vê país rachado entre globalizados e periféricos

A corrida presidencial francesa poderá tomar um rumo semelhante ao das eleições americanas? A França adotou todas as normas da globalização e se tornou uma sociedade "americana": desigual e multicultural. Se optar pelo voto, a periferia terá um peso determinante.

O diagnóstico é do geógrafo Christophe Guilluy, autor do recém-lançado "Le Crépuscule de la France d'en haut" (O crepúsculo da França de cima, ed. Flammarion, sem edição no Brasil).

Nele, Guilluy trata das fraturas de um país rachado entre camadas globalizadas das metrópoles e classes populares periféricas, "que desceram o elevador social".

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Folha - As primárias abertas (em que todos podem votar) da direita e do centro podem ser consideradas uma pré-eleição?

Christophe Guilluy - Engana-se quem acha que se trata de um teste nacional. É uma pequena parte do eleitorado francês, essencialmente o da direita – ou seja, idosos e burgueses, além de participações marginais da extrema-direita e da esquerda.

Como o senhor observa o embate entre François Fillon e Alain Juppé?

Juppé não compreendeu que o eleitorado queria um líder bem conservador. Ele fez a aposta de se aproximar da esquerda e tentou se vender como o candidato que poderia unir o país. Agiu como se já estivesse nas eleições presidenciais contra Marine Le Pen, mas se enganou de timing.

Parece também estar equivocado sobre o que se tornou o eleitorado da direita hoje: muito conservador e muito sensível à questão do Islã. Fillon foi ao encontro de um posicionamento bem radical contra o Islã, que o beneficiou muito.

O sr. afirma que a classe que elegeu Donald Trump é a mesma que votou pelo Brexit e também a mesma que apoia a extrema-direita na Europa. Quais os indícios?

O sistema econômico globalizado produz na Europa e nos Estados Unidos a mesma contestação. Ela emana dos mesmos territórios e das mesmas categorias. São os Estados Unidos periféricos que elegeram Trump, é o Reino Unido periférico que votou a favor do Brexit, é a França periférica, a Holanda periférica, a Suécia ou a Suíça periféricas que carregam a onda populista.

Foi essa onda que votou 'não' no referendo (a França rejeitou o tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa em 2005). Esses territórios são os das pequenas e médias cidades e das zonas rurais. O ponto em comum: são nesses espaços rurais e industriais que foram criadas menos vagas e onde as demissões foram mais substanciais.

Territórios com uma classe média decadente?

Esses territórios são também os das novas categorias populares, que saíram da classe média. As camadas assalariadas de baixo rendimento, que antes formavam o núcleo duro da classe média, desceram o elevador social nas últimas décadas. O nível de vida diminuiu. Elas se fragilizaram, mas ainda constituem a maioria da população.

O sistema econômico não precisa mais delas. Ele se contenta com os quadros mais qualificados e 'abertos' à globalização que estão nas metrópoles. Ora, pela primeira vez na história, operários, empregados, camponeses, jovens e aposentados que fazem parte dessas categorias populares representam a maioria da população europeia ou americana e não vivem onde se cria a riqueza, mas sim nessa França ou nessa América periféricas.

No caso da França, o que precipitou o crescimento dessa periferia na última década?

Basicamente o desemprego, a queda no poder de compra, a precarização do emprego, o terrorismo, a imigração, a crise de 2008 e toda a fragilização dos assalariados. Os mais jovens têm grande dificuldade de conseguir emprego e, não é por acaso, que muitos deles votam na Frente Nacional. Aliás, jovens e pessoas que estão no mercado de trabalho são os eleitores típicos da extrema-direita.

Qualquer que seja o resultado das primarias, é provável que o segundo turno das eleições seja decidido entre direita e extrema-direita dada a fragilidade da esquerda. Quem conseguira atrair os votos da França que o sr. chama de periférica?

As categorias populares estão em um processo de desfiliação dos grandes partidos, tanto da direita quanto da esquerda. O filho das classes populares, sejam elas brancas, pretas, árabes ou muçulmanas não acredita mais nos grandes partidos. A maioria vai se refugiar na abstenção e uma parte vai para a Frente Nacional porque ela não faz parte do establishment.

O sr. diz que 60% da população francesa mora hoje nessa França periférica. Uma presidente como Marine Le Pen seria inevitável?

Tudo é possível. Quando essas categorias com salários modestos, trabalhadores em empregos precários, desempregados e pobres decidem votar, elas têm uma influência determinante sobre o resultado das eleições. Será o caso das eleições presidenciais. As classes dirigentes em toda a Europa temem um efeito dominó no continente que viria das periferias dos países.

Com um discurso mais duro, Fillon, caso seja escolhido, não poderia captar os votos da periferia?

Acho que seria difícil. Ele pode atrair a direita tradicional e burguesa, mas não consegue chegar às classes populares. Por exemplo, os burgueses falam em Islã. As classes populares falam em imigração, em pretos, em árabes. Na questão da imigração, a Frente Nacional vai sempre obter mais votos que eventualmente Fillon.

Marine Le Pen estará em uma situação mais confortável que o pai dela quando concorreu contra Jacques Chirac, em 2002?

A radicalização é muito forte. Há 15 anos, havia pessoas nessas classes populares que acreditavam na esquerda como uma solução. Após cinco anos de governo Hollande, isso não existe mais. Marine Le Pen soube também melhorar a própria imagem. A estratégia de excluir o pai, como se estivesse dizendo "abandonamos a extrema-direita tradicional antissemita", parece ter funcionado, apesar de ser puro marketing.

Creio que ainda mais eficaz foi a aproximação de Marine Le Pen de pessoas com um discurso mais ligado à esquerda. As pesquisas mostram que ela seria batida hoje por Fillon, mas tudo é possível.

Qual o futuro para a esquerda francesa?

A esquerda está num estado catastrófico. Ela não consegue mais atingir as categorias populares. Aceitou o liberalismo e o capitalismo e tem dificuldade de assumir isso. (Jean-Luc) Mélenchon tenta se reconectar às categorias mais modestas, mas o divórcio é longo. Não é por acaso que existem hoje candidatos de esquerda como Macron (ex-ministro da Fazenda do governo Hollande), um verdadeiro liberal descomplexado. Imagino uns dez a 15 anos de travessia pelo deserto.

Por que o sr. critica o 'burguês-boêmio'?

Os bobôs (burguês-boêmio) são a burguesia de hoje, mas com uma definição bem mais embaralhada. É difícil se confrontar à essa burguesia porque ela é cool. Ela é como Steve Jobs, usa jeans em vez de gravata e não assume a sua posição de classe.

O problema é que a luta de classes não se exprime politicamente. As pessoas precisam então se servir de Trump, ou de coisas do gênero, para colocar pra fora algo que é da ordem da luta de classes, mas de uma maneira inconsciente. Essa burguesia nos vende uma sociedade cool, quando isso não existe.

Por que a tensão mais visível está com os imigrantes, que também são 'perdedores'?

Quando optamos por um modelo econômico globalizado, obtemos também o seu modelo de sociedade: multicultural, com formas de comunitarismo, como na sociedade americana. Há uma ansiedade em relação à imigração porque se tem medo de se tornar minoritário.

Quando se faz parte de uma categoria modesta, a capacidade de se proteger é menor. Não se muda de endereço facilmente tampouco os filhos são mandados para boas escolas.

O tema da imigração monopolizou o debate das primárias. Em que medida entrará na campanha presidencial?

A questão da identidade tem sido usada pelos grandes partidos há mais de 30 anos. A direita finge que é 'branquinha' e a esquerda, finge que é 'pretinha' ou 'arabezinha'. Exatamente como nos Estados Unidos.

Mas acho que a eleição vai estar mais calcada na questão econômica e social que na imigração. Marine Le Pen vai apostar numa lógica estatista, de defesa do serviço público, que é cara à esquerda, esperando conseguir amealhar votos. Fillon virá com uma proposta mais liberal, de enxugar o serviço publico e reduzir deficits.


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