Folha de S. Paulo


Papa permite a padres perdoar aborto, mas preserva dogmas católicos

Max Rossi/Reuters
O papa Francisco faz sua tradicional oração do Angelus, na praça São Pedro, no Vaticano, na manhã deste domingo
O papa Francisco na praça de São Pedro

Em um novo documento, a carta apostólica "Misericordia et Misera", publicada no domingo (20), o papa Francisco autorizou permanentemente todos os sacerdotes católicos a absolver pessoas envolvidas com a prática do aborto (tanto mulheres quanto médicos, por exemplo) que decidirem se confessar.

Até o ano passado, por causa da gravidade do pecado do aborto segundo a doutrina católica, a absolvição tinha de ser aprovada por um bispo.

Inicialmente, o papa decidiu estender tal poder a todos os padres de forma temporária, como parte do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que começou em 8 de dezembro de 2015 e terminou também no último dia 20.

Os jubileus são períodos especiais (equivalentes a um ano do calendário de cerimônias da Igreja) de peregrinação para Roma e perdão dos pecados que fazem parte da tradição católica desde o século 13.

O último tinha sido em 2000, ainda durante o pontificado de João Paulo 2º. Segundo o ritmo regular dos jubileus, o próximo seria em 2025, mas Francisco quis convocar antecipadamente o de 2015-2016.

Além da tradicional ida de peregrinos às principais igrejas de Roma, o jubileu teve caráter global: era possível obter a absolvição completa dos pecados (após a confissão) em mais de 10 mil catedrais e outros centros católicos espalhados pelo mundo.

Seria um equívoco enxergar a decisão do pontífice argentino como sinal de uma postura mais permissiva do catolicismo em relação ao aborto.

Pouco antes da publicação da "Misericordia et Misera", o pontífice argentino descreveu a interrupção da gravidez como "crime horrendo" e "pecado muito grave" em entrevista a emissoras católicas italianas.

Não é a primeira vez que ele coloca a questão nesses termos, aliás. Então, o que está acontecendo exatamente?

Do ponto de vista do magistério de Francisco, ou seja, da orientação que ele deseja dar aos demais membros da Igreja Católica, a palavra-chave é "misericórdia", um tema que é quase uma obsessão do atual papa, constando no título de seu livro mais recente.

Vista como um microcosmo do jubileu e do pontificado de Francisco como um todo, a medida parece se encaixar bastante bem com as
linhas mestras dessa visão.

Em resumo, Jorge Bergoglio está longe de ser um revolucionário. Para ele, os pontos-chave da doutrina católica sobre moralidade sexual e familiar (em temas como casamento e homossexualidade, por exemplo) são virtualmente intocáveis.

Ao mesmo tempo, ele ressalta com frequência que o mundo real é mais complicado (e está mais "ferido", como costuma dizer) do que a simples aplicação do dogma dá a entender. Daí a necessidade de adotar uma interpretação misericordiosa, caso a caso, do ideal cristão de comportamento -sem que isso equivalha a dizer que o aborto pode ser admissível.

A postura é, em alguma medida, similar à adotada no documento mais polêmico produzido pelo papa até agora, a exortação apostólica "Amoris Laetitia", referente aos desafios da vida conjugal cristã no mundo atual.

Nesse texto, Francisco deixa entreaberta a possibilidade de que alguns católicos que se separaram do cônjuge original e hoje vivem com outra pessoa possam voltar a comungar.

Mas isso ocorreria após um processo longo de acompanhamento, envolvendo o padre responsável pela paróquia que o casal frequenta e o bispo da região onde estão -o papa enfatiza a relativa autonomia dos prelados de cada local para conduzir esse processo.

A passagem que trata do tema recebeu críticas de cardeais conservadores, que pediram esclarecimentos do papa. "Eles pensam que a situação é sempre preta e branca, mesmo quando, no fluxo da vida, é preciso aplicar o discernimento" e ser mais flexível, declarou Francisco em entrevista ao jornal católico italiano Avvenire".


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