Folha de S. Paulo


Iraquiano de 9 anos conta como foi frequentar 'escola' do Estado Islâmico

João Castellano/Folhapress
QAYYARAH, IRAQUE 16 DE NOVEMBRO DE 2016 Abdurrahman 9 anos teve brao amputado pelo ISIS em vilarejo pr—ximo a cidade de Qayyarah Foto: Joao Castellano/Folhapress ***EXCLUSIVO FOLHA*** ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Abdurrahman, 9, teve a mão amputada após morteiro disparado pelo Estado Islâmico cair perto dele

O pequeno Abdurrahman parece ser mais jovem que os nove anos de idade que garante ter. Franzino, metido em uma calça uns três números maior, ele fica ainda mais frágil quando tenta mover o braço direito, amputado um pouco acima do pulso.

Abdurrahman perdeu a mão, segundo conta, há pouco mais de um mês, quando fugia com a família de uma batalha entre o Estado Islâmico e as forças iraquianas em um vilarejo a cerca de 50 quilômetros ao sul de Mossul.

"Eu nem estava correndo, estava andando e, de repente, houve um barulho. Um barulho muito alto", conta, sempre com um leve sorriso no rosto. Um morteiro disparado pelos militantes do EI caiu ao seu lado. A mão e parte do braço ficaram despedaçados pelos estilhaços. Os ferimentos no peito não foram tão graves e já estão secos.

Os braços finos, a voz de criança e o sorriso leve escondem uma outra parte do passado recente desse fã de Messi e Cristiano Ronaldo.

Abdurrahman foi treinado pelo EI para matar. Teve aulas sobre como montar uma bomba improvisada, a segurar e a atirar com um AK-47 e, até, a maneira correta e mais eficiente de degolar uma pessoa. "Eu nunca fiz nada com ninguém, mas eles diziam que, se a gente não aprendesse, eles nos matariam. Então, eu aprendi", conta, com naturalidade.

Sem a mão direita, Abdurrahman acha que não vai mais conseguir ser o cientista que um dia sonhou se tornar. Até a chegada do EI a essa região na margem ocidental do rio Tigre, há quase dois anos e meio, ele ia à escola.

"E eu era esperto, um bom aluno", conta. "Gostava de estudar ciências, mas desde que o Daesh [acrônimo em árabe para o EI] chegou, paramos de ir para a escola."

Abdurrahman diz que frequentou as aulas oferecidas pelos militantes do EI por apenas duas semanas. Ele, como seus pais, tem medo de ficar estigmatizado por ter vivido sob o domínio da milícia terrorista.

Muitas vezes os moradores dessas regiões preferem não contar que conviveram de forma até mesmo cordial e pacífica com os homens do EI. "Ele um dia me disse que estava com medo, e eu o impedi de voltar para lá", diz seu pai, Abdulah.

Questionado sobre o que mais tinha medo na "escola" do EI, Abdurrahman deu uma resposta bastante condizente com sua idade: "Eu tinha medo da barba deles".

Abdurrahman conta que jamais viu alguém ser morto diante de si. E que nunca precisou usar o que aprendeu. "Eles nos ensinavam a degolar as pessoas com livros. Eles mostravam figuras e nos diziam como deveríamos fazer, mas nunca fizemos", conta o jovem, sentado no sofá da sala destinada às visitas de sua casa, na cidade de Qayyara.

Mas ele admite que aprendeu a preparar e instalar bombas verdadeiras, assim como a carregar e a atirar com rifles reais, como os AKs-47.

Torcedor do Real Madri, ele ainda sente dores no braço direito. O ferimento continua ali e tem sido tratado em uma clínica na cidade. Seu pai, no entanto, acha que o filho só vai superar o trauma que passou quando conseguir uma prótese. "O que será dele sem uma mão?"

Abdurrahman parece não se preocupar muito com isso agora. Quer ver o ferimento sarar para voltar a brincar. Quer voltar a jogar bola, principalmente. "Quero ensinar, dar aulas", diz o jovem iraquiano. Ele ainda não sabe muito bem o que quer ensinar. Talvez seja árabe. E quer que crianças como ele possam aprender a ler.

"Enquanto elas não puderem, eu vou ler para elas", diz Abdurrahman, sempre com um sorriso tímido, sempre com a fala tranquila, mesmo diante de tanta dor e de tanta incerteza.

COTIDIANO DE GUERRA

A história de Abdurrahman pode ser aterradora para ocidentais pouco afeitos às táticas do EI, mas é extremamente comum por aqui.

Estima-se que até 1 milhão de crianças tenham sido educadas em cursos como o que ele assistiu. Isso nos últimos dois anos e meio e apenas no Iraque. Muitas crianças como ele estão sendo usadas em Mossul, nesse momento, como homens bomba.

Há relatos de jovens de 10 anos, 12 anos, enfrentando as forças especiais iraquianas com AKs-47 nas mãos.

Os que fugiram vão levando consigo lições que provavelmente guardarão para toda a vida.

A ONU e outras agências humanitárias acreditam que apenas no entorno de Mossul vivam cerca de 600 mil crianças. Boa parte delas, dizem eles, acabará se tornando um refugiado.

O número de pessoas deslocadas pela ofensiva de Mossul já superou 60 mil, e as Nações Unidas acreditam que número possa superar 700 mil nas próximas semanas.

Enquanto a batalha pela retomada do bastião do auto-proclamado califado do EI continua, as crianças que não conseguiram fugir são as que mais sofrem.

Nos hospitais de campo, o número de menores de idade cresce diariamente. "E há muitos casos de crianças com problemas mentais e emocionais", diz um médico que prefere não divulgar seu nome.


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