Folha de S. Paulo


FRED DEWILDE, 50

Sobrevivente de ataque em Paris reconstitui tragédia em desenhos

RESUMO Quando o tiroteio na casa de espetáculos Bataclan, em Paris, começou, Fred Dewilde, 50, jogou-se no chão e segurou a mão de uma desconhecida. Um ano depois dos ataques que deixaram 130 mortos, ele publicou uma história em quadrinhos a respeito. A cada página desenhada, afirma, sentia-se melhor. Mas não o bastante para voltar a ver um espetáculo ali, diz à Folha. O Bataclan foi reaberto no sábado (12).

Fred Dewilde
Desenho em que Fred Dewilde, 50, retrata o momento em que ficou deitado, junto com uma desconhecida, durante o atentado a casa de shows Bataclan
Desenho em que Fred Dewilde, 50, retrata o momento em que ficou deitado, junto com uma desconhecida, durante o atentado a casa de shows Bataclan

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Quando o ataque começou, eu pensei que fosse parte do concerto, que fossem fogos de artifício. Eu vi as pessoas pulando, porém continuei sentado.

Eu disse: "Uau, acordem! Sério? É uma piada". Vi um homem atirando na nossa direção, mas não pude acreditar. Só quando vi um deles trocando o cartucho é que pensei que não era um show.

Eu deitei no chão e continuei a rir. Pensava que aquilo era impossível. Ainda não tinha visto sangue, nem pessoas feridas. Vi os olhos de um homem morto e finalmente entendi.

Abriram as portas, e as pessoas começaram a correr. Houve uma grande onda humana. Fui empurrado para perto de Elisa.

Ela tinha 32 anos e estava profundamente ferida. Não podia se mover. Eu assumi o papel de pai. Ela foi minha filha durante a noite.

Nós não nos conhecíamos, mas passamos mais de duas horas juntos deitados no chão. Pensei: "Estamos ferrados. Precisamos ficar vivos o maior tempo possível".

Perguntei se ela conhecia a história do pinguim que respirava pela bunda. Foi um comentário absurdo, mas me ajudou a sobreviver.

Na hora eu não percebi o que tinha dito. Estava deitado no sangue, coberto por pedaços de carne. Era a pior situação para fazer humor.

Foi uma loucura. Talvez em outros países as pessoas estejam acostumadas a esse tipo de violência. Mas, em Paris, não podíamos imaginar. Até agora não entendemos como aquilo aconteceu.

Eu estava com três amigos. Um deles foi ferido no braço. O casal conseguiu fugir nos primeiros minutos.

Eu não fui a nenhum concerto desde então. Seria impossível. O sangue, a multidão. Fui duas vezes ao cinema e já foi bastante difícil.

Voltei ao Bataclan no dia em que receberam os sobreviventes. Estava com minha mulher e com Elisa, com quem mantenho contato.

Uau. Como podemos ter sobrevivido àquilo? Eu vi tantas pessoas mortas... Talvez eu nunca seja capaz de assistir a outro concerto ali.

ILUSTRAÇÃO

Depois do que vivi no Bataclan eu tinha um filme dentro da minha cabeça. Sabia que precisava desenhar para poder seguir adiante.

Mas eu tinha problemas em como retratar o ataque. Queria fazer de uma maneira com pouca violência. Com o menor volume de sangue possível. Não desenhei, por exemplo, o som das metralhadoras. Pareceria cômico.
A princípio pensei em desenhar à mão e depois no computador. Isso me faria trabalhar duas vezes em cada página. Eu não consegui.

Cada cena foi difícil de desenhar, mas era também um alívio. Era duro controlar a minha mão. Quando terminei, me sentia melhor. Havia desenhado a minha história e os meus sentimentos.

Me fez me sentir bem, mesmo que fosse estranho. Pensei que os outros sobreviventes poderiam sentir a mesma coisa. Conversei com meu psicólogo e decidi publicar o "Meu Bataclan".

A ilustração da capa, em que seguro a mão de Elisa, representa para mim aquela noite. O que aconteceu comigo e com aquela garota. Representa também a humanidade e a esperança que existe mesmo em meio ao sangue.


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