Folha de S. Paulo


Mesmo com furacão e entrave político, missão da ONU no Haiti é acelerada

A destruição do furacão Matthew, que matou ao menos 546 pessoas e afetou outras 2,1 milhões no Haiti, segundo dados da ONU e do governo, não impacta a presença da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) no país. Após 12 anos, a organização caminha para o encerramento da missão.

Pela primeira vez desde 2007 o Conselho de Segurança da ONU prorroga a presença da Minustah —formada por componentes civil, militar e policial— por menos de um ano. A cúpula deu o seu veredito em 13 de outubro, nove dias após o Matthew passar pelo Haiti, e confirmou a presença da missão no país até 15 de abril de 2017 —data pré-indicada em agosto por relatório do secretário-geral.

O novo mandato também não altera o número autorizado de 2.370 militares, que mantém desde 2014, e de policiais da Unpol (Polícia das Nações Unidas) com 2.601 desde 2012.

O consenso entre os especialistas ouvidos pela Folha é de que há uma fadiga na comunidade internacional com o país, que se arrasta há mais de quatro anos em um imbróglio político.

"Se o Matthew tivesse causado um grande impacto no Haiti, eles teriam aumentado o número de militares e policiais, como fizeram em 2010 [após o terremoto]", diz Eduarda Hamann, coordenadora do programa de consolidação da paz do Instituto Igarapé.

Para Hamann, um Haiti mais maduro, que não é mais uma ameaça tão grande para a paz e segurança internacionais, aliado à "fadiga" dos membros do conselho com o impasse político, foram fatores determinantes para as decisões. "Os doadores internacionais já estão cansados de esperar o Haiti fazer eleições e caminhar com as próprias pernas", afirma.

Depois de mais de três anos com eleições presidenciais, legislativas e municipais atrasadas e com seu então presidente Michel Martelly governando sob decreto, o país conseguiu realizar a primeira rodada do pleito em outubro de 2015, quando 105 partidos se cadastraram no CEP (Conselho Eleitoral Provisório) para a disputa. No entanto, o resultado foi anulado após várias acusações de fraudes no processo.

Brasil, Estados Unidos, Canadá, Japão e União Europeia haviam contribuído com doações em dinheiro para o fundo eleitoral haitiano. Em junho, após o CEP confirmar que repetiria as eleições, a União Europeia respondeu tirando sua missão de observação eleitoral do país..

Atualmente, o Haiti vive sob o governo de Jocelerme Privert, presidente do Senado, que desde junho, quando seus 120 dias de mandato interino venceram, despacha sem autorização expressa do Congresso. Com os estragos do furacão, o pleito que aconteceria em 9 de outubro foi reagendado para 20 de novembro..

Vídeo Haiti

Ricardo Seitenfus, representante da OEA (Organização dos Estados Americanos) no Haiti entre 2009 e 2011, diz que só houve uma renovação de seis meses justamente porque não aconteceram as eleições. "Há uma vontade expressa dos países membros do Conselho de Segurança de encerrar a Minustah".

Seitenfus considera que o elemento crucial da situação é a crise política, que não foi devidamente trabalhada pela Minustah, pelos diferentes representantes do secretário-geral e por seus conselheiros.

"A comunidade internacional não conseguiu fazer com que houvesse um acordo entre os atores políticos haitianos —nunca houve—, um sistema eleitoral confiável e dotar o conselho eleitoral de autonomia financeira e política", afirma.

Apesar da Minustah apoiar o processo eleitoral democrático, respeitando a soberania do Haiti, o país que deve ser o responsável por realizar seus sistemas de votação.

Para o alemão Kai Michael Kenkel, especialista em operações de paz, a ONU e outras parcelas da comunidade internacional não conseguem há mais de 20 anos —somando missões anteriores— mudar e criar um quadro político sustentável por não contar com o interesse do governo e das elites.

"O esforço da ONU e dos outros doadores ficará sem efeito até surgir uma verdadeira cooperação dos responsáveis haitianos", diz Kenkel. O general Augusto Heleno Ribeiro, primeiro-comandante da Minustah, analisa que a missão tem êxito em seu braço militar, que permite a criação de um ambiente seguro e estável. No entanto, que o maior entrave é não ter um departamento que desenvolva no país projetos que o ajudem a sair da situação política e econômica na qual vive.

"[A ONU] impõe a paz, que é o caso do Haiti, depois fica patinando na sua própria ineficiência. Sem um órgão dentro da missão que crie um clima de desenvolvimento no país, vão ficar patinando", diz Heleno.

Editoria de Arte/Folhapress
DEVASTAÇÃO NO HAITIO tamanho do estrago provocado pelo furacão Matthew

SAÍDA

Ensaiada desde 2009 e interrompida pelo terremoto no ano seguinte, a saída da Minustah vem sendo repensada a partir de 2013, quando a missão entrou em seu plano de consolidação, e deve ocorrer. Mas não a da ONU.

Segundo os analistas, a missão deve adotar um novo perfil, que pode ser mais policial a militar, como já vem sendo feito desde 2014, quando 52% da segurança passou a ser feita pela Unpol. Também há hipóteses que seja uma missão política, ou que a Minustah sirva de transição para que uma nova operação se instale no país. De acordo com Hamann, que estuda a Minustah há 11 anos, cinco perfis são estudados.

Apesar da situação de segurança do país ser relativamente tranquila, segue frágil devido à incerteza política, afirma a ONU na resolução do Conselho de Segurança. Após a posse do novo presidente, que deve ocorrer em fevereiro, a organização pretende mandar ao Haiti uma missão de avaliação para decidir a possível retirada da Minustah e a sua futura presença no país.

"Em seis meses isso não vai se resolver", afirma Hamann. "Não é só realizar eleições e sair, tem que ter um processo pós para que [a democracia] seja sustentável, é um desafio para a Minustah, porque [caso não se sustente] pode fazer que um novo mandato aconteça".

Seitenfus também prospecta que seis meses é pouco tempo para que o país mude de estágio. "A comunidade internacional continuará girando em círculos no Haiti, porque não tomou as medidas necessárias para diminuir a crise política", afirma o internacionalista. Para ele, a falta de um trabalho de transição da ditadura (1957-1990) para a democracia contribuiu para o cenário atual.

A expectativa é que a consolidação da Minustah conduza a reconfiguração da atuação da ONU no Haiti. Os fundos da organização que atuam no país, o governo e seus parceiros poderão assumir as funções atuais da missão, informou Sandra Honoré, representante especial do secretário-geral no Haiti, em entrevista à Folha, em março de 2015. No entanto, é o terreno haitiano que ditará seu futuro.


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