Folha de S. Paulo


'Usar fome como arma na Síria é medieval', diz brasileiro na ONU

Sitiada e esfomeada, a cidade de Aleppo voltou a ser cenário de intensos embates nesta sexta-feira (28) quando grupos rebeldes iniciaram uma ofensiva para romper o cerco do Exército sírio.

A operação incluiu forças da milícia Jabhat Fatah al-Sham (antes chamada Jabhat al-Nusra) e do Exército Livre Sírio, contando com bombardeios e carros-bomba.

O Observatório Sírio para os Direitos Humanos, ONG baseada em Londres, afirmou que 15 civis morreram por bombardeios rebeldes. A mídia estatal noticiou o mesmo número. O regime de Bashar al-Assad mantém o leste de Aleppo, outrora centro comercial da Síria, cercado desde setembro. Os moradores não têm acesso a comida nem auxílio médico.

Ana Paula Paiva/Valor
O representante da ONU, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, durante entrevista em 2014
O representante da ONU, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, durante entrevista em 2014

A estratégia é "medieval", segundo o diplomata brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro. Mas toda guerra acaba, afirmou em entrevista à Folha na semana passada. E, quando esta acabar e houver um julgamento, "os responsáveis serão punidos".

Pinheiro é presidente da Comissão Independente Internacional de Investigação sobre a Síria, criada em 2011 pela ONU para acompanhar as violações dos direitos humanos. A comissão já publicou 12 relatórios.

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Folha - O ditador sírio Bashar al-Assad tem cercado áreas rebeldes e sufocado a oposição. Isso não é um crime de guerra?

Paulo Sérgio Pinheiro - Sem nenhuma dúvida. Tanto o governo quanto os terroristas têm feito isso. É uma coisa medieval usar a fome e a sede como armas de guerra. Os responsáveis por isso, se um dia houver um julgamento, serão duramente punidos.

Quanto isso vai demorar?

Toda guerra acaba, mas algumas demoram bastante. No caso da Síria, ela dura tanto devido às principais potências envolvidas.

Houve tréguas temporárias, em Aleppo. Essas pausas pontuais são o suficiente?

Não. Mas tudo o que refresca a situação da população civil é ótimo para nós. A virtude dessas interrupções é que, por meio delas, o cessar-fogo pode ser ampliado.

Assad deu a entender, em uma entrevista recente, que os ataques são necessários para proteger os civis.

É uma leitura um pouco alargada. O governo considera todos os grupos como terroristas. Nós não utilizamos esses adjetivos. Os terroristas para nós são especificamente o Estado Islâmico e a antiga Jabhat al-Nusra. Diversos desses bombardeios governamentais têm atingido civis sob a desculpa de que estão lutando contra terroristas.

Há crescente crítica ao governo russo por seus bombardeios em Aleppo [interrompidos há dez dias]. Como o sr. avalia essa atuação?

Não distribuímos notas pela performance dos Estados-membros. O que nos preocupa é saber qual é a repercussão dos bombardeios entre os civis. Quem está pagando pelos ataques, tanto da coalizão dos EUA quanto da intervenção russa, são os civis.

Há relatos de abusos também entre os rebeldes.

Não existe mocinho e bandido. O que há são forças que não respeitam o direito internacional humanitário. Os patrocinadores dos grupos que estão lutando têm uma responsabilidade compartilhada quando há crimes de guerra. Você tem responsabilidade, se arma os grupos que cometem esses crimes.

Há hoje uma atenção em especial a Aleppo, dentro do conflito sírio. Por quê?

Aleppo é importante porque você vê, ali, um microcosmo. Todos os atores estão participando. Vários países e vários grupos, para o horror da população civil. Mas nós não fazemos muito esse campeonato de qual situação é pior. A crise em Aleppo faz parte do estágio atual da escalada de desrespeitos à população civil.

Que decisões levaram a situação a este ponto?

Chegamos a este ponto devido à contribuição de todos os atores externos que patrocinam os grupos não estatais ou apoiam o governo. Aquilo que começou em 2011 como uma rebelião contra o governo não existe mais. Os intelectuais e os estudantes estão no exílio, presos ou mortos.

De quem é a responsabilidade?

A responsabilidade fundamental pela radicalização e agravamento da crise é do Conselho de Segurança. É o maior responsável por essa mortandade. O Estado Islâmico não nasceu com a rebelião. Foi construído mais tarde. Há uma vinculação direta entre o extremismo e a incapacidade do Conselho.

Vai haver um ponto de inflexão após o qual esta crise não possa mais ser ignorada?

Eu acho que já não dá mais para ignorar. Há 5 milhões de sírios no exterior e 7 milhões de deslocados internos. Metade da população do país está ou deslocada, ou exilada. Mas muitas oportunidades foram perdidas justamente pela ilusão em ambos os lados de que ganhariam esta guerra. Não vão. O país está dividido, em uma escalada permanente.

O sr. afirmou que vai continuar a documentar crimes de guerra em Aleppo e pediu dados ao regime. É possível esperar a cooperação da Síria?

Até 2012, tínhamos um bom diálogo. Cheguei a ir uma vez à Síria. Agora eles não reconhecem o nosso mandato. Eu não posso entrar lá. Só que não ter acesso ao território não significa não ter acesso às informações. Temos milhares de entrevistas e toneladas de material e relatórios.


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