Folha de S. Paulo


Como os Panteras Negras inspiraram o movimento Black Lives Matter

Os Panteras Negras surgiram em Oakland, uma cidade de classe operária no norte da Califórnia, 50 anos atrás, declarando a um país conturbado o surgimento de um novo partido cujo objetivo era defender os negros norte-americanos contra a violência policial e proteger o direito de um povo oprimido a determinar seu futuro.

Na curta vida da organização, ela lançou um ambicioso programa que servia café da manhã a crianças e abriu clínicas de saúde gratuitas para a realização de exames de detecção da anemia falciforme. Ao mesmo tempo, os membros do partido apavoravam os norte-americanos mais convencionais com seus apelos à revolução, que contrastavam com a insistência de Martin Luther King em protestos não violentos.

Os Panteras Negras terminaram por implodir, enfraquecidos por disputas internas e por esforços do governo americano para solapar a organização. J. Edgar Hoover, então diretor do FBI (polícia federal americana), dizia que o partido representava "a maior ameaça à segurança interna da nação". O governo Nixon agiu para proscrevê-lo.

O aniversário da fundação do Partido Pantera Negra surge em um momento de tensão renovada entre as comunidades negras e as forças policiais, que deu origem a um novo movimento de justiça social que também tem elos para com Oakland —o Black Lives Matter (vidas negras importam, em português).

Paul J. Richards/AFP
Black Lives Matter protestors shout slogans during a Black Lives Matter protest march thru the streets in Washington, DC on July 9, 2016. / AFP PHOTO / PAUL J. RICHARDS ORG XMIT: PJR023
Black Lives Matter durante protesto na capital Washington, em julho deste ano

Centenas de Panteras Negras de todo o mundo devem eram esperados em Oakland para uma conferência iniciada na quinta-feira (20).

Os negros dos Estados Unidos continuam defasados em relação aos brancos em termos de empregos, habitação e saúde. E Oakland, uma cidade que no passado tinha grande população negra, está perdendo seus moradores negros, porque a disparada nos preços das casas, causada pelo boom da tecnologia, resulta na exclusão dos moradores mais pobres.

"A única mudança é que o tempo passou", disse Elaine Brown, antiga presidente do partido, que continua ativa politicamente na região da Baía de São Francisco. "Continuamos a ser os mais pobres, e consequentemente somos um povo oprimido. Continuamos a ser um povo oprimido."

Bobby McCall tinha 20 anos quando saiu de Filadélfia e se mudou para Oakland, a fim de ajudar a distribuir 10 mil sacos de mantimentos gratuitos. Ele concorda que as condições não melhoraram.

"É por isso que temos movimentos como o Black Lives Matter", disse McCall. "Mas não somos mais tão organizados quanto no passado. Eles não oferecem um programa de alimentação para crianças como o que tínhamos. Precisam começar a desenvolver programas."

RESISTÊNCIA

A data em geral aceita para a fundação do partido é o dia 15 de outubro de 1966, ainda que Bobby Seale, um de seus fundadores, afirme que ela aconteceu uma semana mais tarde.

Era o período da guerra do Vietnã e dos protestos pelos direitos civis, e Seale e Huey Brown escreveram a plataforma do partido, que continha dez pontos. O documento cobrava habitação e empregos decentes, e defendia a autonomia da população negra.

A organização que eles fundaram foi batizada como Partido Pantera Negra de Autodefesa, e sua inspiração foi uma organização de direitos civis em Atlanta; o partido adotou como uniforme a boina usada pelos membros da resistência francesa a Hitler, e seus integrantes faziam patrulhas armadas na área.

Em resposta, os legisladores californianos, em 1967, revogaram uma lei que permitia que pessoas portassem armas em lugares públicos. Os Panteras Negras conquistaram atenção quando protestaram portando armas diante da sede do Legislativo estadual.

Os norte-americanos brancos estavam acostumados à campanha não violenta liderada por King para o combate ao racismo, mas não estavam acostumados a ver negros armados.

Hoje, o sempre ácido Seale se irrita quando as pessoas falam de cafés da manhã gratuitos e de armas de fogo sem mencionar aquilo que ele define como contexto crítico. Seale diz que criou o partido com o objetivo de eleger candidatos minoritários para postos políticos. Os "programas de sobrevivência", como a distribuição de comida e roupas, estavam vinculados a campanhas de registro de eleitores, diz Seale.

Quanto à violência, que incluía tiroteios com a polícia, ele diz que "a estrutura do poder era violenta. O Ku Klux Klan era violento. Eles vinham e nos atacavam. Se você atira em mim, atiro de volta. Isso deve ser chamado de autodefesa ou de violência agressiva? Não é violência agressiva".

INFLUÊNCIA

O Museu da Califórnia em Oakland organizou a exposição "Todo Poder ao Povo: o 50º Aniversário dos Panteras Negras", mostrando a atuação do partido entre 1968 e 1982. O declínio da organização foi influenciado por esforços do governo Nixon para solapá-la, por meio de informantes e campanhas de desinformação.

"O FBI inspirou ações contra a sede do partido. Havia uma campanha generalizada para retratá-lo como organização violenta e negativa", disse Rene de Guzman, diretor de estratégia de exposições e curador sênior de arte no museu. Os membros do partido, entre os quais Seale e Newton, passaram por frequentes prisões. Seale deixou a organização em 1974. Newton a dissolveu em 1982, fechando a escola comunitária e o jornal que os Panteras Negras operavam. Mais tarde, ele foi morto a tiros por um suposto traficante de drogas.

Muita gente vê influência do partido nos movimentos jovens atuais, especialmente o Black Lives Matter, que também protesta contra a brutalidade policial. Tudo começou com uma hashtag e uma carta de amor aos negros postada no Facebook por Alicia Garza, uma jovem ativista de Oakland, em 2013, depois que George Zimmerman foi considerado inocente pela morte de Trayvon Martin, um jovem negro de 17 anos, na Flórida.

Seale gostaria de ver o Black Lives Matter organizando pessoas para que busquem cargos eletivos, e criando um programa de empregos ambientais para os jovens.

Robbie Clark, 35, organizador de movimentos pela habitação e ativista do Black Lives Matter que cresceu em Oakland, disse que o movimento já está fazendo exatamente isso. Seus fundadores trabalham, por exemplo, em benefício dos trabalhadores domésticos e imigrantes.

Alguns ativistas, disse Clark, querem ter as eleições como foco e outros preferem trabalhar fora do sistema político. Muita gente insiste que o movimento precisa das duas coisas.

"Podemos mudar algumas dessas condições se colocarmos as pessoas certas no poder", disse Clark, "mas é preciso que exista a compreensão de que colocar pessoas diferentes nessas posições não fará com que o sistema mude do dia para a noite".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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