Folha de S. Paulo


Escalada totalitária e fuga de cérebros assombram Turquia de Erdogan

O governo turco derrotou em 15 de julho os soldados e tanques de seus adversários, sobrevivendo a uma tentativa de golpe militar que deixou mais de 270 mortos.

Cem dias depois, a se completarem neste domingo (23), o presidente Recep Tayyip Erdogan governa um país mais instável e mais totalitário, em quadro de constante piora.

Murat Cetinmuhurdar/Reuters
Turkey's President Tayyip Erdogan addresses the audience during a meeting at the Presidential Palace in Ankara, Turkey, August 4, 2016. Murat Cetinmuhurdar/Presidential Palace/Handout via REUTERS ATTENTION EDITORS - THIS PICTURE WAS PROVIDED BY A THIRD PARTY. FOR EDITORIAL USE ONLY. NO RESALES. NO ARCHIVE. TPX IMAGES OF THE DAY ORG XMIT: ANK02
O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, discursa no palácio presidencial em Ancara

A perseguição a supostos simpatizantes do clérigo Fetullah Gülen, acusado por Ancara de planejar o golpe, tem debilitado o país, onde o número de turistas estrangeiros caiu 38% em agosto.

A maquinaria posta em marcha contra os funcionários públicos e jornalistas pode devolver a Turquia ao período de incerteza política dos anos 1980, quando houve de fato um golpe militar.

"A Turquia precisou de três décadas para tornar-se um país seguro que pudesse atrair pesquisadores de todo o mundo", diz à Folha Ibrahim Sirkeci, professor de estudos transnacionais na Regent's University de Londres.

"Agora tudo isso foi embora. O país não é mais visto como parte de um mundo livre, e será lembrado pelas medidas extremas que impôs. Não será fácil nem rápido recuperar-se", afirma.

Turco-britânico, Sirkeci estuda a migração em áreas em conflito. Ele diz que cientistas e outros profissionais qualificados estão entre os primeiros a deixar o país, cenário semelhante ao que ele enxerga hoje na Turquia. "Minha caixa de correio está explodindo desde julho com acadêmicos turcos procurando emprego no exterior", diz.

A Turquia pode, assim, testemunhar uma fuga de cérebros que, para Sirkeci, significaria ver escoar "uma geração de pessoas talentosas". Há também notícias de serviços públicos em crise pela falta de empregados.

A Turquia renovou neste mês o estado de emergência, inicialmente instituído em 20 de julho, por mais três meses contando a partir de 19 de outubro. Durante o período, o país dará continuidade à perseguição de quem enxerga como insurgentes.

Detratores do governo adventam a hipótese de que a tentativa de golpe tenha sido orquestrada pelo próprio Erdogan para fortalecer-se, tese sobre a qual não há provas.

O número de demitidos e suspensos já passa dos 105 mil, entre professores, policiais e juízes. O governo deteve 72 mil, dos quais 32 mil foram oficialmente presos. Ademais, 180 veículos de imprensa foram fechados e 127 jornalistas foram presos.

O repórter turco Cagdas Ulus faz parte das cifras. Ele foi detido no aeroporto, a caminho da lua de mel. Hoje livre, ele aguarda julgamento. Seu passaporte foi cancelado pela suspeita de ligações com a rede de Gülen, acusada pela tentativa de golpe.

A justificativa lhe soa estapafúrdia. Em 2011 e 2012 ele passou nove meses preso, apontado como membro de uma união curda perseguida no país. Ele acredita que a rede de Gülen esteve por trás de seu julgamento, o que significaria que ele é agora perseguido por ambos os lados.

"O governo poderá prender todos os dissidentes. Turcos, curdos, seculares. Quem estiver contra a ideia deles", afirma à reportagem. "No meio-tempo, inocentes como a gente serão investigados."

Além do expurgo, a sociedade turca também tem sido afetada pela polarização. "Quem perde seus empregos é estigmatizado como traidor", afirma Sirkeci. "Isso significa que uma grande parcela da população irá sofrer discriminação no futuro."

Entre as demissões e detenções, um grupo de jovens jornalistas anônimos reuniu-se em torno do projeto "Turkey Purge" (expurgo turco), que monitora violações aos direitos humanos.

Eles conversam com a Folha sem revelar suas identidades, temendo represálias.

"Todos temos histórias pessoais que nos motivam", diz um membro. "Familiares de alguns de nós foram presos. Temos amigos próximos que estão sendo torturados."

Para os criadores do Turkey Purge, as perseguições mudaram o país de maneira "devastadora". "A maior parte dos direitos humanos são completamente ignorados."


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