Folha de S. Paulo


No Haiti pós-furacão, distinguir nova ruína do que já era arrasado é difícil

À medida que se avança pelas cidades devastadas pelo furacão Matthew, no Haiti, a sensação perturbadora é inevitável: entre barracos de zinco destelhados e crianças se banhando e bebendo água marrom dos córregos poluídos, nem sempre é possível diferenciar o que foi destruído nesta tragédia e o que já estava precário desde antes.

Além da miséria —é o país mais pobre das Américas— e da instabilidade política, nos últimos dez anos o país foi atingido por um terremoto em 2010 que matou 220 mil pessoas e por outro furacão (Felix, em 2007).

Danilo Verpa/Folhapress
Comércio de alimentos doados por ONGs americanas em Les Cayes, cidade no sul do Haiti
Comércio de alimentos doados por ONGs americanas em Les Cayes, cidade no sul do Haiti

Para visitar as regiões do país mais afetadas pelo Matthew, que matou ao menos mil pessoas, a Folha acompanhou nesta terça (11) um comboio de caminhões de ajuda humanitária escoltado pela Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), liderada pelo Brasil, com destino a Les Cayes, no sul do país.

Saímos às 6h de Tabarre, bairro da capital Porto Príncipe onde as tropas brasileiras ficam baseadas. Além da miséria, nota-se pelas ruas a profusão de cartazes dos 27 candidatos à Presidência.

As eleições, que vêm sendo adiadas desde janeiro sob acusações de fraude, aconteceriam no domingo (9), mas foram postergadas novamente após a passagem do furacão.

No trajeto rumo ao sul do país, região mais afetada pelos ventos de até 230 km/h, a maioria das casas é feita de chapas de zinco.

Antes da cidade de Miragoane, no centro do país, surgem os primeiros sinais do furacão: uma ponte que desabou e cujo rio teve que ser aterrado, grandes áreas com árvores retorcidas e desfolhadas.

CARIBE

Durante o percurso, vez ou outra cenários de pobreza e devastação dão lugar a belas montanhas cobertas de vegetação e praias paradisíacas —é fácil esquecer, mas estamos no Caribe.

Na mesma ilha do Haiti, aliás, está a República Dominicana, um dos destinos turísticos mais populares do mundo.

Quando nos aproximamos de Les Cayes, terceira maior cidade do Haiti e uma das mais afetadas pelo furacão, as reações dos moradores se dividem entre a simpatia pela ajuda que chega e impaciência com a reportagem.

Um militar brasileiro explica que eles não gostam de ser fotografados porque acham que "a alma deles é capturada", algo relacionado à religião vodu.

Em Les Cayes, há muito comércio nas ruas, principalmente de alimentos. Em sacos bem grandes empilhados ao lado das barracas, lê-se "American Rice" —alimento doado por ONGs americanas, que está sendo vendido pelos ambulantes.

Desde que o furacão passou pelo Haiti e plantações foram arrasadas, há relatos de pilhagem de caminhões de ajuda humanitária.

SEM CASA NEM CERTIDÃO

Mais tarde, quando esperamos a chegada de caminhões do comboio, um grupo de haitianos curiosos se forma. A reportagem é abordada por Vilea, 40, um motorista de caminhão que teve o teto de sua casa levado pelo furacão e agora mora na cozinha de um amigo com a mulher e o filho de cinco anos.

"Perdi tudo: minha casa, minhas roupas, minha certidão de nascimento", diz em bom inglês. Ele também fala espanhol, francês e crioulo —as duas últimas as oficiais do país.

"Sempre que eu vejo gente branca vou perguntar se podem me ajudar com alguma coisa. Com um emprego, eu quero dizer, não sou mendigo", diz. Desempregado desde antes do furacão, ele colhia e vendia cocos para sobreviver, mas muitas palmeiras foram mortas pelas chuvas e ventos.

Seus vizinhos, diz, estão em situação similar, e um amigo está desaparecido. "Se sobraram cinco casas inteiras onde eu moro, foi muito."

Editoria de Arte/Folhapress

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