Folha de S. Paulo


Em cidade síria sob cerco, falta sal e população vive à base de folhas e arroz

Rajaai Bourhan não tem sal. Aos 26 anos, vivendo em uma cidade síria sob cerco, esse jovem também não tem carne, eletricidade ou água corrente. Mas, enquanto conversa com a reportagem da Folha, ele frisa: não tem sal.

Bourhan é um dos moradores de Madaya, próxima a Damasco. O local está sitiado pela milícia radical libanesa Hizbullah desde julho de 2015, em uma crise humanitária por vezes esquecida.

No domingo (25), pela primeira vez desde abril, um comboio humanitário conseguiu entregar suprimentos à população local. Há relatos de mortes por fome e de suicídios por desespero. Crianças não vão à escola devido a casos de meningite.

A ajuda prestada pela ONU é dificultada pelos constantes bombardeios e foi temporariamente interrompida após um ataque a um comboio em setembro.

Com a comida recebida nesta semana, Bourhan diz que ele e sua família —no total, quatro pessoas— poderão se alimentar por mais dois meses. Mas a remessa não incluiu o sal nem o molho de tomate que tanto esperavam para cozinhar.

"Imagine que um punhado de arroz seja a refeição de todo o dia", afirma Bourhan. "Nós pensamos em comida o tempo todo. Nossos corpos e mentes enfraquecem."

Bourhan pesava 93 quilos quando o cerco começou. Àquela altura, ele pensava que fosse ser um conflito breve. Não foi. O jovem chegou a 67 quilos, e hoje está em torno dos 70 quilos.

Ele conta que, faminta, a família passou a comer folhas. Por exemplo, de arbustos de morango e de árvores de eucalipto. Madaya é conhecida, na Síria, pelo clima frio. Quando a temporada gelada voltar, no fim do ano, as condições vão mais uma vez se deteriorar. Sem eletricidade, são usados geradores.

A família cozinha queimando plástico —sacolas, caixas de fruta, brinquedos— e o estoque não deve durar. "A fumaça é horrível. Você não pode nem imaginar."

Louai Beshara/AFP
A Red Crescent convoy prepares to leave Damascus to the besieged areas of Madaya and Zabadani, on February 17, 2016 during an operation in cooperation with the UN to deliver aid to thousands of besieged Syrians. Almost half a million people in Syria are in areas under seige, according to the United Nations, after almost five years of civil war between Syria's government and rebel forces. / AFP / LOUAI BESHARA ORG XMIT: DAM866
Comboio com ajuda internacional se prepara para deixar Damasco a caminho de Madaya, em fevereiro

LEITURA

Bem-humorado, Bourhan conta à reportagem que hoje, sob cerco, sua única distração é a leitura. Ele tem treinado o inglês com obras de história, e atualmente lê sobre o Império Otomano (1299-1922).

Ele encontra os textos na internet ou pede emprestado. Mas não devolve, brinca.

"Todos os meus amigos estão longe. Eu conheço algumas pessoas na cidade, mas não me misturo. E não há nada para fazer aqui."

Bourhan culpa todos os atores políticos, incluindo o regime sírio, a milícia libanesa e, especialmente, o Irã, que apoia o regime do ditador sírio Bashar al-Assad.

O jovem culpa também a comunidade internacional, que depois de mais de cinco anos não conseguiu interromper essa guerra civil. Cerca de 500 mil pessoas morreram na Síria desde 2011.

A ONU estima que 13,5 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária no país, e 600 mil estão em áreas sitiadas, como Madaya.

"Quando puder sair daqui, a primeira coisa que vou fazer é ter uma boa refeição. Então vou começar a procurar emprego", diz o jovem.


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