Folha de S. Paulo


Ligações de emergência caem após caso de violência policial, diz estudo

Os moradores de Milwaukee ficaram indignados ao saber, cerca de três meses depois de acontecido, que um homem birracial havia sido severamente espancado em uma festa por diversos policiais de folga que estavam presentes. O homem, Frank Jude, sofreu uma fratura no nariz, diversas contusões e grave sangramento nos ouvidos, depois que os agressores enfiaram canetas em suas orelhas.

A agressão, acontecida em outubro de 2004, veio à luz depois que um artigo do "Milwaukee Journal-Sentinel" sobre o acontecido causou protestos. Como resultado, nove policiais foram demitidos pela polícia de Milwaukee; três terminaram condenados em um processo federal por violação dos direitos civis de Jude.

O caso, de acordo com uma nova pesquisa, também resultou em uma queda no número de ligações para notificação de crimes ao serviço de emergência da polícia de Milwaukee.

O tempo transcorrido entre a agressão de Jude e sua divulgação na imprensa criou um experimento natural particularmente propício para uma equipe de sociólogos interessados em saber se a desconfiança quanto à polícia pode influenciar na relutância de uma comunidade em denunciar crimes.

Os resultados também podem influenciar o debate sobre o efeito que a ampla disseminação de casos de violência policial —que hoje é possível gravar em vídeo usando celulares e divulgar rapidamente via Internet— seria capaz de exercer sobre o combate ao crime.

Em um novo estudo publicado pela revista acadêmica "American Sociology Review", os sociólogos Matthew Desmond, da Universidade Harvard, Andrew Papachristos, da Universidade Yale, e David Kirk, da Universidade de Oxford, estabeleceram uma conexão direta entre atos amplamente divulgados de violência policial e o número de ligações para os serviços de emergência originados de bairros na área em questão.

O tempo decorrido entre o momento do ataque a Jude e o momento em que ele foi amplamente divulgado permitiu que os pesquisadores isolassem o efeito do ocorrido sobre as ligações de emergência.

Os pesquisadores analisaram mais de 110 mil ligações de emergência em Milwaukee, um ano antes e um ano depois da agressão. Os pesquisadores estimaram que 17% (ou 22 mil) de ligações a menos foram realizadas do que provavelmente teria sido o caso se a agressão não tivesse ocorrido. Eles constataram que o efeito durou cerca de um ano.

Desmond disse que os resultados "meio que nos espantaram; não esperávamos ver um efeito tão forte, e que durasse tanto tempo".

VARIAÇÕES

A maior parte da queda nas ligações de emergência aconteceu em bairros negros. "Isso mostra a laceração profunda que eventos como esse causam no tecido social, em comunidades predominantemente negras", disse Desmond.

Acontecimentos como esses não precisam ser locais para que tenham impacto. Os pesquisadores também consideraram de que maneira o volume de ligações de emergência em Milwaukee mudou depois de relatos noticiosos sobre violência policial em outras cidades, mais distantes.

Em um dos outros dois casos que estudaram, encontraram efeito significativo sobre o número de ligações de emergência quanto a crimes.

A mudança no número de telefonemas de emergência é incomum porque a correlação entre a incidência de crimes e o número de chamados à polícia é usualmente forte. "Se o crime está crescendo em Milwaukee, o número de ligações também deveria estar em alta", disse Papachristos.

Não é que as pessoas silenciem quando ocorre um crime. Bem o oposto: a notícia se espalha rapidamente de casa em casa.

"Os moradores estão muito dispostos a informar os outros quanto ao que está acontecendo em seu bairro", disse Adrian Spencer, que em dado momento viveu em um bairro predominantemente negro do centro de Milwaukee, diante de um bar que se tornou polo de brigas, rachas de automóveis e tiroteios. "Mas é muito mais difícil convencê-las a falar diretamente com a polícia. Ou a participarem de uma audiência."

Para surpresa de Spencer, ela e sua mãe pareciam ser as únicas pessoas que ligavam para o 911, o número de emergência da polícia, a fim de denunciar crimes relacionados ao bar. Quando perguntava a respeito a outras pessoas do bairro, algumas das quais moradoras mais antigas do que ela, a resposta que ouvia era "o que você acha que a polícia vai fazer?".

Ela suspeita que essa relutância em ligar tenha por base o ceticismo quanto à polícia; as pessoas consideravam que suas ações não fariam muita diferença, ou que os moradores seriam tratados injustamente. "Há muito medo de retaliação", ela disse. "As coisas não acontecem do jeito que as pessoas pensam. E quando você assiste TV, e vê na TV o que a polícia está fazendo, você definitivamente não quer contato com a polícia, se puder evitar."

O novo estudo tem por foco dados recolhidos 12 anos atrás e com foco primário em Milwaukee. Mas Desmond diz que o efeito pode ser aplicar a outros lugares. "Creio que tenha implicações para que o estamos vendo em Cleveland, em Charlotte, em Baltimore, com casos muito divulgados de violência policial. Milwaukee se parece com lugares como Baltimore e Cleveland, em seu nível de segregação. Creio que isso provavelmente tenha muito a ver com o assunto".

Mike Blake/Reuters
Protesters march during another night of protests over the police shooting of Keith Scott in Charlotte, North Carolina, U.S. September 23, 2016. REUTERS/Mike Blake ORG XMIT: CHA118
Manifestantes protestam na noite de sexta (23) contra a morte de Keith Lamont Scott, 43, em Charlotte

Edward Flynn, chefe da polícia de Milwaukee, não vê a conexão. Ele diz que os chamados de emergência estão em alta em sua cidade.

Segundo ele, os dados dos pesquisadores foram afetados por uma peculiaridade na maneira pela qual a polícia de Milwaukee lidava com seus telefonemas de emergência. Até três anos atrás, os telefonemas eram inicialmente recebidos pelo condado e depois transferidos à cidade. Flynn diz que muitos dos telefonemas caíam ou eram desligadas antes de chegar ao serviço municipal de emergência mas depois que a polícia já havia enviado um policial ao local da ocorrência.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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