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Divisão na Colômbia pós-acordo com Farc é paradoxo, diz negociador-chefe

Federico Parra/AFP
O negociador-chefe do acordo de paz do governo colombiano com as Farc, Frank Pearl, 54
O negociador-chefe do acordo de paz do governo colombiano com as Farc, Frank Pearl, 54

"O grande paradoxo é termos logrado um acordo com as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] e agora estarmos tão divididos entre nós, cidadãos que sempre cumprimos a lei", diz, com certo desalento, um dos principais negociadores da paz com a guerrilha.

Frank Pearl, 54, é o único remanescente, no atual time, desde a primeira iniciativa de contato com as Farc, em 2009, quando o presidente da Colômbia era o hoje inimigo do acordo, Álvaro Uribe.

Como muitos colombianos, Pearl teve a vida tocada pelo terror da guerrilha, quando teve de migrar para Miami após o avô de sua mulher, que era jornalista, ser sequestrado, seguido de uma ameaça concreta de que ela seria o próximo alvo.

"Este acordo, sendo imperfeito, é bom, e os que estão pensando em votar 'não' precisam entender que, ao negociá-lo, pensamos também neles e levamos em conta suas ressalvas".

Pearl conversou com a Folha em seu apartamento, em Bogotá.

*

Folha - Está otimista para o plebiscito?

Frank Pearl - Sim, estou otimista. A nossa principal preocupação é fazer com que as pessoas saiam para votar, porque as pesquisas vêm mostrando ainda um nível de participação relativamente baixo. Deve dar para o "sim", mas imagino que com um resultado justo.

Por isso agora estamos na fase de conversar mais, de resolver as dúvidas. Quero que os cidadãos saiam a votar, pelo "sim" ou pelo "não", mas que votem. Nosso principal inimigo no próximo domingo seria a abstenção [na Colômbia, o voto não é obrigatório].

Mas é verdade que o governo também teme que uma vitória arrasadora do "sim" pode ser prejudicial?

Sim. Se o "sim" tiver 90% e o "não", 10%, creio que isso poderia ser interpretado como um cheque em branco para as Farc. E isso não seria nada bom. Porque a ideia deste acordo é, justamente, que ninguém tenha um cheque em branco.

É importante que exista um número de cidadãos que expressem suas preocupações, suas dúvidas e suas reservas e que assim transmitam aos outros cidadãos e ao próximo governo que essas ressalvas precisam ser levadas em conta. Só assim seremos estimulados a cumprir os acordos.

Mas, nesse caso, não teria sido melhor a opção defendida pela oposição, a de um referendo consultivo em que os cidadãos pudessem dizer o que gostam no acordo e com quais pontos não concordam?

Essa hipótese não seria possível, porque chegamos a um texto em que os artigos estão conectados entre si. Portanto a pergunta tem de ser "sim" ou "não". E insisto, os que votarem "não" pensando que há uma possibilidade de se voltar à mesa e renegociar apenas os pontos polêmicos, estão equivocados.

Estou nesse processo desde o princípio e garanto que conseguir armar um novo início de conversas levaria anos, seria numa outra gestão, e ninguém sabe o que pode acontecer.

Os senhores, como equipe de negociação, eram contra o plebiscito como forma de referendar o acordo? Por quê? Sentiam que há um risco?

Essa hipótese foi levantada no começo. Quanto Santos disse que queria o plebiscito, nós lhe perguntamos por quê. Naquele momento não nos parecia necessário. Mas o presidente insistiu, desde o início, que deveria haver um mecanismo para referendar, e que a população tinha de participar. Sua justificativa era que o que estávamos propondo era uma tal mudança de rumo do país, uma mudança tão grande, que era preciso perguntar às pessoas. Afinal, a Colômbia é uma democracia.

Pode contar como foi o início deste processo?

Tínhamos um facilitador, Henry Acosta, um empresário próximo a Pablo Catatumbo [um dos líderes das Farc], que se mostrou interessado em promover uma aproximação, mas isso era algo lento e difícil. Estávamos ainda durante a gestão do ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010). Tentamos, então, deixar claro, por meio de Acosta, que o governo queria se sentar numa mesa de forma mais estruturada.

Mas quando essa possibilidade ficou mais concreta?

Entre 2009 e 2010, nós intensificamos as tarefas humanitárias de resgate de reféns, e quem nos emprestou os helicópteros, com a tripulação, foi o Brasil. Então eu mandava, por meio desses helicópteros, envelopes fechados com cartas para pessoas do outro lado que eu sabia que as fariam chegar aos líderes.

O governo brasileiro soube disso?

Não, nesse primeiro momento, não. Mas quando comecei a receber respostas positivas, fui ao Brasil e tive uma reunião com Celso Amorim [então ministro das Relações Exteriores]. Ele me confirmou que o Brasil estava disposto a cooperar e me ofereceu um mapa de lugares em que poderíamos nos encontrar com a guerrilha em território brasileiro, nessa primeira fase, que era até então secreta.

É importante reforçar que, nessa fase secreta, era essencial que os encontros não fossem na Colômbia, porque fazê-los aqui gerava muita preocupação na mesa e no país. Então fazíamos algumas semanas no Brasil, num lugar próximo a Manaus, e em outras ocasiões no Equador.

Isso se interrompeu por algum motivo específico?

Houve um contexto que travou o andamento das coisas, o rompimento de Uribe com Hugo Chávez (1954-2013), no final de sua administração. Pelo lado das Farc, assumiu um novo secretariado que não parecia querer inaugurar seus trabalhos dando um sinal de debilidade, ou seja, querendo já iniciar negociações de paz.

Então houve um período de suspense. Mas, assim que Santos foi eleito, eu perguntei a Uribe o que deveria fazer, e ele me disse: "Conte tudo ao presidente Santos". Eu me reuni com o presidente e contei até onde tínhamos caminhado.

Foi por isso que, em seu discurso inaugural, em 2010, Santos disse que tinha no bolso a chave para a paz. E a primeira coisa que fez, então, foi reaproximar-se de Chávez, porque então o apoio do Equador e da Venezuela passariam a ser essenciais.

Quando o Brasil sumiu desse processo, e por quê?

O Brasil foi se afastando. Em 2014 principalmente, creio que por conta do momento político interno, o governo deve ter achado que seguir apoiando essas negociações poderia impactar de modo negativo a reeleição do PT. Mas nunca o Brasil deixou de dizer que apoiava a paz, nós só passamos a não poder contar com essa base para as negociações.

A princípio, nós contávamos que as reuniões de negociações poderiam ser feitas no Brasil, mas as Farc acabaram preferindo Cuba, que lhes parecia um território mais acolhedor.

Juan David Tena/AFP
O presidente colombiano, Juan Manuel Santos, recebe escultura de pomba da paz do artista Fernando Botero
O presidente Juan Manuel Santos recebe escultura de pomba da paz do artista Fernando Botero

Como o sr. explica que um número alto de colombianos esteja contra a ideia da paz?

Eu não subestimo as preocupações dos que se opõem ao acordo, porque elas são legítimas e importantes. Há gente que tem medo. Durante toda a negociação, estivemos com essa preocupação em mente.

Muitas dessas preocupações têm a ver com a questão da Justiça especial para a guerrilha. Os uribistas dizem que o acordo dá margem à impunidade porque diz que delitos de lesa humanidade (assassinatos, sequestros, estupros) não são anistiáveis, mas ao mesmo tempo afirma que crimes com "conexão política", sim, podem ser anistiados. Não é uma brecha para delitos graves?

Não, isso não vai acontecer. As Farc obviamente podem tentar, vão querer alegar que tal assassinato, ou tal sequestro tem conexão política e que portanto pode ser anistiado. Mas nenhum tribunal vai aceitar isso.
Você amarrar uma pessoa a uma árvore e deixa-la aí por anos é uma extrema privação de liberdade, é tortura, ou seja, trata-se de um crime de lesa humanidade, não anistiável. Eles poderão dizer que é um crime político, mas não é. É tortura e será punida.

Mas a questão de não haver prisão, e sim "restrição de liberdade", também levanta muitas dúvidas.

Partimos do princípio de que a Justiça especial terá mais a ver com a reparação. Quem não contribuir com a verdade, e for considerado culpado, irá à Justiça penal tradicional. Mas quem colaborar poderá ter sua pena transformada em trabalho comunitário. Por exemplo, se você era um guerrilheiro que colocava minas terrestres, então será condenado a ficar tantos anos trabalhando em desminar um território.

Mas esse indivíduo vai continuar morando em sua própria casa, com sua família, sem vigilância?

Depende. Se ele colocou minas num local distante de onde vive, vai ter de ficar lá até a pena acabar. Com um bracelete, com um soldado vigiando a porta da casa, isso o tribunal irá decidir. As restrições de mobilidade serão definidas de acordo com as penas.

Sei que a sociedade resiste que um ex-guerrilheiro esteja ali, trabalhando ao lado de sua casa. Mas, com o tempo, com atividades sociais e culturais, que estão previstas, será criada uma nova socialização.

Temos de encarar a realidade, as prisões na Colômbia não provocam ressocialização de nenhum tipo. Mas se você colocar a pessoa condenada a construir parques e escolas, envolvê-la em atividades culturais e esportivas, os laços de compaixão e de reconciliação vão ser criados. Sabemos que o acordo não é perfeito. É uma solução imperfeita, mas que é boa.

O sr. que está nesse processo desde o governo anterior, como vê agora o ex-presidente Uribe voltar-se contra Santos, num processo que, pelo que o sr. conta, foi impulsado a princípio pelo próprio Uribe? É vaidade, para não deixar que o sucessor fique com a glória?

Essa disputa entre os dois é desnecessária e precisa se resolver. A paz deveria estar acima da política, principalmente da política eleitoral de curto prazo.

Eu não minimizo as críticas de Uribe a esse acordo porque elas são importantes e representam o que pensa uma parte importante dos colombianos. Mas teremos de fazer a paz levando em consideração essas dúvidas.

Para mim, o grande paradoxo é termos logrado um acordo com as Farc, depois de tanto esforço, e agora, deste lado da mesa, entre cidadãos que sempre cumpriram com a lei, estejamos tão divididos. Por isso, defendo que essa reconciliação entre Uribe e Santos precisa acontecer, respeitando a pluraridade de opiniões.

E se ganhar o "não", o que vai ocorrer?

Voltaremos à estaca zero. Pior, o que ocorre quando se rompem processos como este é que se radicalizam as posições. As Farc vão querer fazer demonstrações de força, e o Estado também. Voltaremos a estar em guerra. E, para voltar a uma mesa de negociação, levaremos anos.


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