Folha de S. Paulo


Bairro em Cartagena concentra deslocados por conflito colombiano

"Nunca vi o mar. Desde que deixei os Montes de María prefiro sair de casa o mínimo possível. É daqui ao restaurante onde trabalho, e só", conta Jessica Montaño, 58, uma das habitantes do bairro Nelson Mandela.

A terrível ironia da declaração dessa mulher é que o "Mandela" (como é chamado por seus habitantes) fica na região metropolitana de Cartagena, a menos de 5 km de uma das orlas caribenhas mais disputadas por turistas do mundo inteiro. "Eu tenho medo de tudo, prefiro ficar aqui dentro", disse, já se esquivando da reportagem para dentro de casa.

Fundado em 1994 por um conjunto de 30 famílias que vinham dos Montes de María, ao sul do Departamento de Bolívar, o Nelson Mandela é uma das maiores concentrações de "desplazados" (deslocados pelo conflito armado) da Colômbia.

De sua população atual de 50 mil habitantes, 85% vieram de outras regiões (Urabá, Antioquia, Palenque, Magdalena Medio, Tolima, Guaviare), fugindo da violência causada pela guerra entre o Exército, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e os paramilitares.

A Folha visitou o Mandela às vésperas da assinatura do acordo entre o governo e a guerrilha, marcado para esta segunda (26), e do plebiscito (no próximo dia 2 de outubro), em que a população colombiana escolherá aprovar ou não o documento.

Pesquisas recentes mostram uma boa vantagem do "sim", com 55,3%, com relação ao "não", de 38,3% (instituto Datexco).

O que torna o cenário incerto, porém, é a tendência apontada nas últimas semanas de crescimento do "não" (que subiu 9 pontos) e a expectativa de uma alta abstenção prevista por quase todos os institutos (o voto na Colômbia não é obrigatório), o que pode afetar esse panorama.

No Mandela, veem-se muitos jovens nas ruas e vielas, envolvidos em consertar ou pintar suas motos ou passear com elas, geralmente com algum amigo na garupa.

Muitos ostentam camisetas de clubes de futebol, locais ou de times espanhóis. Meninas andam em grupos e sentam-se à beira das casas. Não se veem tanto os mais velhos, mas eles espreitam de dentro de suas casas, geralmente de portas abertas devido ao intenso calor caribenho.

DESCONFIANÇA

"Eu não voto se não me derem algo. Sempre que é eleição de um candidato, eles vêm aqui e nos trazem coisas. Agora é uma eleição de ideias, de muitas coisas que não estão ditas, ninguém sabe direito o que há nesse tal documento. Não vou votar", diz Lucas Eugenio, que veio da região do Guaviare, vive no Mandela desde 2004 e trabalha num café turístico de Cartagena.

Contra essa desconfiança que parece generalizada ao conversar com os habitantes do bairro, estão algumas iniciativas como associações de moradores, de jovens, de ONGs independentes e de ex-guerrilheiros e ex-paramilitares desmobilizados, que vêm fazendo uma campanha informal pelo "sim".

"Estamos tentando conscientizar as pessoas, mas é difícil. O que mais as preocupa hoje é o lado econômico, mais do que a violência, porque a violência sabemos que continuará sem as Farc", diz um dos integrantes do movimento Colombia Nueva, Rafael Barraga, 24.

Ele explica. "As pessoas não conhecem o texto do acordo, que é grande e difícil de ler, mas sabem que ali está escrito que os ex-guerrilheiros vão receber um salário por dois anos. Enquanto isso, os moradores daqui, você está vendo como nós vivemos, todo mundo é pobre, e pagamos extorsão a grupos criminosos. Como aceitar que um ex-guerrilheiro, que matou, que sequestrou, tenha um salário fixo, e nós seguimos aqui tentando viver com tão pouco e sempre sob ameaça?".

Editoria de Arte/Folhapress

De fato, um dos itens do acordo prevê que ex-guerrilheiros recebam 90% de um salário mínimo por 24 meses e, ao final desse período, caso tenham participado de obras comunitárias de reparação às vítimas, recebem um bônus extra para recomeçar a vida.

Barraga mesmo se considera uma vítima, não da guerrilha em particular, mas do ambiente que a guerra criou, nos bairros pobres, onde estão presentes grupos criminosos formados por ex-guerrilheiros, ex-paramilitares ("paracos", como o chamam) e narcotraficantes comuns —as chamadas "Bacrim" (bandos criminosos).

Por algum tempo, Barrega andou próximo a uma das gangues locais e logo passou a ser perseguido. "Tinham decidido que eu ia morrer, então eu fazia um caminho diferente todo dia para voltar para casa. Até que o grupo que estava me ameaçando saiu daqui", conta, sem querer entrar em mais detalhes.

Já seu colega, Alejandro Vázquez, 22, é mais otimista. "Creio que as pessoas que têm familiares nos locais de conflito vão ajudar a convencer o voto pelo 'sim'. Minha mãe está fazendo isso, porque tenho um irmão que está no Exército, já há meses lutando longe de casa, e ela quer que ele volte e que esse horror termine."

Vázquez conta que sua família deixou o sul do Estado de Bolívar porque "já não distinguíamos mais do que ter medo, se dos 'paracos', das Farc ou de outra guerrilha, bastava ser alguém de uniforme, e sabíamos que ia nos fazer mal".

Apesar de os mais jovens, como os meninos do Colombia Nueva, não quererem saber de voltar às suas regiões de origem, porque preferem estar mais perto de urbanizações onde existam empregos e chances de estudo, os mais velhos sentem nostalgia da vida no campo antes de a guerra ter ficado tão sangrenta.

"Como eles sabem que a guerrilha tirou essa paz deles, muitos são rancorosos, e vão votar 'não' porque querem que os que causaram a destruição de seu passado vão para a cadeia", diz Vázquez, que hoje se diz adaptado ao Mandela.

MASSACRES

Apesar de receber refugiados de várias partes do país, a ferida mais aberta entre os moradores do Mandela é mesmo a dos massacres dos Montes de María, ao sul de Cartagena, entre os departamentos de Sucre e Bolívar.

Ali, desde os anos 1980, guerrilha e "paracos" estiveram em combate contínuo, causando mais de 80 mil mortes e o deslocamento de imensa quantidade de camponeses, muitos para as cidades da costa mais próximas, como Cartagena e Barranquilla.

Durante a gestão Álvaro Uribe (2002-2010), houve um acordo para a desmobilização dos paramilitares. Enquanto as lideranças foram extraditadas para os EUA, alguns comandos médios cumpriram penas reduzidas e os milicianos de baixo escalão foram em geral anistiados.

A situação nos Montes de María se acalmou um pouco, mas os ex-paramilitares que não encontraram outro modo de sustento passaram a integrar as bacrim, que hoje ocupam parte do espaço (rotas e laboratórios) deixado pelos grandes cartéis de narcotráfico de cocaína (Cali e Medellín) dos anos 90.

"O que existe na Colômbia hoje, em lugares que não são exclusivamente de influência das Farc ou do ELN (Exército de Libertação Nacional, guerrilha de esquerda ainda na ativa), é uma mescla já difícil de descrever. Uma espécie de 'tudo junto e misturado'", diz à Folha o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, que realizou oficinas de jornalismo para jovens no local.

Para Anderson, isso faz com que as pessoas em lugares como o Mandela "não pareçam dizer a verdade ou que a digam pela metade, quando contam sua história. A sensação que tenho é que há sempre um poder assombrando aquela população, seja de 'paracos', de 'bacrins', do que for", completa.

De fato, ao perguntar aos garotos do Mandela sobre a situação atual, as respostas são evasivas. Já sobre o passado, não se colocam reservas para contar histórias terríveis de assassinatos e crimes.

"Era comum as crianças saírem para a escola e encontrarem corpos nas vielas, por exemplo", conta Barraga. "A gente sabia quando chegava um grupo novo e outro ia embora, pela diferença dos crimes que víamos acontecer."

Mas, quando questionados sobre o presente, preferem dizer apenas que esperam que as coisas melhorem depois do plebiscito.

'VACUNAS'

Quieta durante toda a reunião da Folha com os jovens da associação, Lorena Coronado, 21, é a única que, ao final do encontro, expõe os perigos atuais de viver num bairro de "desplazados". E conta sua história.

"Saímos de nossa casa no interior, fugíamos da extorsão (chamada aqui de "vacuna"), porque meu pai era comerciante e tinha que pagar impostos aos guerrilheiros e aos 'paracos'. Viemos para o Mandela e meu pai montou um bar. Mas não só as 'vacunas' continuaram, a preços absurdos, como no bar ele escutava muitas coisas. Ouvia, por exemplo, criminosos combinando ações, organizando sequestros e assassinatos. Um dia vieram me avisar que ele tinha sido assassinado. Saí correndo e encontrei ele já no chão, morto. A polícia diz que foi porque se recusou a pagar 'vacuna' a algum grupo, mas eu também acho que pode ter sido porque ele começou a saber coisas demais."

Apesar das reclamações generalizadas dos moradores, o governo nacional e regional vêm trabalhando numa lenta urbanização do Mandela. O bairro ainda é de ruas e vielas irregulares e de terra, mas o sistema de eletricidade, que não havia durante a primeira década desde sua fundação, hoje chega à maioria das casas, assim como uma precária rede de esgotos.

Um dia antes da assinatura do acordo em Cartagena, o presidente colombiano Juan Manuel Santos e o líder das Farc, Rodrigo "Timochenko" Londoño, irão viajar juntos aos Montes de María, num gesto de demonstração de reconhecimento ao sofrimento da população local.

"O presidente Santos quer deixar claro que o foco do acordo são as vítimas, por isso é natural que visitemos um dos lugares mais lastimados da Colômbia, onde houve vítimas de paramilitares, de guerrilhas, massacres e deslocamento forçado dos camponeses", disse o senador governista Roy Barreras. "O que ocorreu nos Montes de María nunca mais deve se repetir."


Endereço da página:

Links no texto: