Folha de S. Paulo


Vida na capital norte-coreana mistura atos ensaiados e onipresença de clã

Impregnados ou não da ideologia oficial, os norte-coreanos são relembrados a todo instante dos líderes e da necessidade de avançar com a chamada revolução socialista.

Todos os adultos carregam preso à roupa, quando saem de casa, um broche com as fotos de Kim Il-sung (1912-1994) e Kim Jong-il (1941-2011). Há diferentes modelos: de pai e filho ou apenas do "eterno presidente", com a bandeira como fundo, retangulares ou redondos e pequenos.

O rosto dos dois líderes está por toda a parte em Pyongyang e em outras regiões —como na área da montanha Myohyang, a cerca de 150 km da capital, também visitada pela reportagem. Está em salas de reunião, nos monumentos históricos e nos museus, nos limpos vagões do metrô da cidade.

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Da janela do hotel Koryo, onde a reportagem da Folha se hospedou, chamavam a atenção uma enorme tela iluminada com a imagem de pai e filho e a turística Torre da Ideia Juche, com 170 metros de altura.

E onde não está, como no avião da companhia aérea nacional (Air Koryo), em templos budistas e em trilhas de montanhas, o nome de integrantes das dinastias é sempre mencionado.

Já o rosto do atual Kim, o ditador Jong-un, respectivamente neto e filho dos dois primeiros, é visto com frequência menor pela cidade —na TV e no jornal, sim, há repetidas menções a ele.

Segundo Roberto Colin, que foi embaixador do Brasil na Coreia do Norte entre 2012 e 2016, o atual líder repete a estratégia do pai. "Kim Jong-il nunca permitiu seu retrato em nenhum lugar, porque a fonte de legitimidade [do regime] era seu pai, Kim Il-sung. Se se confundem [as imagens], perde o efeito."

GALOPE RÁPIDO

Se não há propaganda de produtos nas ruas, a propaganda ideológica não falta. Há pôsteres conclamando a população a se esforçar mais e fazer o país avançar em ritmo mais acelerado, no galope de um cavalo rápido.

Também há letreiros por toda Pyongyang relembrando a "campanha de 200 dias", lançada pelo regime e que vai até meados de dezembro —antes, outra campanha de mobilização, encerrada em maio, teve duração de 70 dias.

"Nesses dias, devemos tentar atingir mais sucesso, extraordinário, em todos os campos", diz a professora Ri Jong Hwa. No caso dela, houve um esforço extra na produção de artigos sobre a ideologia nacional. "Escrevo de sete a dez artigos todo ano. Este ano, escrevi mais de 20. [Ou seja,] no passado eu podia, mas não tentei com todo afinco."

Outro colega, diz ela, conseguiu escrever 900 páginas no primeiro semestre, frente a cerca de 300 que costuma escrever por ano. E, "no setor têxtil, muita gente terminou a produção planejada para o ano em junho."

Para Phil Robertson, da organização de direitos humanos Human Rights Watch, as campanhas não são nada além de "trabalho forçado para o governo conseguir alcançar suas metas econômicas e sociais".

AJOELHADOS NO JARDIM

Pelas manhãs, é possível ver grupos de mulheres vestidas da mesma forma dançando e agitando bandeiras em pontos específicos da capital, como em frente à estação de trem, para apoiar a mobilização. Cartazes sobre a campanha também estão afixados em locais de trabalho, fazendo contagem regressiva para seu fim.

No domingo (18), dia que seria de descanso, as ruas de Pyongyang estavam agitadas, com operários em atividade, pessoas indo ao trabalho e crianças de uniforme e mochila nas costas —reflexo da campanha dos 200 dias. Muitos se agachavam nos canteiros impecáveis para retocar o jardim, varriam ruas ou limpavam os edifícios.

Em meio à propaganda e à mobilização, é possível identificar avanços, como a popularização dos celulares (sem acesso à internet), a construção de novos prédios e maior oferta de energia elétrica.

Apesar da propaganda constante, as pessoas tentam ter vida normal, com crianças brincando nas ruas e adolescentes conversando juntos.

Robertson ressalva que Pyongyang é uma espécie de oásis, por abrigar uma elite leal ao regime, e que a condição no resto da Coreia do Norte é bem diversa.

Ele diz que há milhares de presos políticos em campos, que falta um conjunto de liberdades (de associação, de expressão) e que o regime se baseia em medo e força.

Segundo relatório de 2014 da comissão de Direitos Humanos da ONU, a Coreia do Norte é o país onde ocorre o maior número de crimes contra a humanidade no mundo, incluindo campos de detenção, tortura sistemática, fome deliberada e perseguição a presos políticos.

COMO RELIGIÃO

Desde 2011, sob a liderança do atual ditador, Kim Jong-un, um novo foco tem sido o desenvolvimento econômico em paralelo ao avanço da capacidade nuclear.

Para o embaixador brasileiro Colin, os testes nucleares cumprem uma segunda função, além de tentar trazer as potências para uma conversa de igual para igual: servem como propaganda interna do avanço tecnológico que o regime diz ter feito.

É difícil adivinhar o quanto do discurso oficial é, de fato, abraçado pelos norte-coreanos comuns. "Essa é a pergunta de 1 milhão de dólares", afirma Colin.

Na avaliação do diplomata brasileiro, mais de 50% acreditam no discurso, inculcado desde a infância, como uma espécie de religião, mas ele não apostaria em percentuais elevados. "Acho que a maioria acredita, mas há outros que são céticos, talvez já tenham entendido que o regime não funciona, mas é melhor se calar."

"A questão principal é que eles não podem discordar, ou serão tachados de desleais ao regime e ficarão sujeitos a uma série de sanções. Ninguém mais acredita no mito coreano", avalia Robertson.


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