Folha de S. Paulo


Medo ronda campo de refugiados na França após promessa de desmonte

Michel Spingler/Associated Press
A migrant stands on a roof in a makeshift camp in Calais, northern France, Tuesday, Aug. 23, 2016. Migrants from Sudan, Eritrea and elsewhere are camped by the thousand in the port city of Calais trying to reach Britain, where they believe they will have better job prospects. (AP Photo/Michel Spingler) ORG XMIT: SPIN103
Migrante em telhado de uma das tendas do acampamento de refugiados em Calais, no norte da França

Espalhados ao longo do perímetro da cerca, refugiados esperam agachados. No silêncio, aguardam aquele momento que –ainda que improvável– pode mudar suas vidas.

São cerca de 9.000 pessoas no campo de Calais, no norte da França, próximo ao porto e ao túnel que levam até o Reino Unido. O objetivo de diversos deles é saltar e embarcar sem serem vistos.

Esses refugiados são a peça central de uma crise em vias de se agravar. O governo francês, que já desmantelou parte do campo, anunciou recentemente que quer destruí-lo por completo. O britânico, que vai construir uma muralha de quatro metros de altura.

Os planos preocupam organizações humanitárias. Se retirados, os moradores de Calais não terão para aonde ir, e será muito mais difícil oferecer o auxílio a eles.

Vindos de países em guerra ou em extrema pobreza, como Síria ou Sudão, os refugiados, por sua vez, dizem que as barracas insalubres são o melhor que já tiveram e não querem abrir mão do campo.

O assunto tem peso político em Paris e em Londres. Na França, eleitores têm se mostrado cada vez mais impacientes para uma solução a essa crise. Na semana passada houve protestos em Calais pelo fim das tendas.

A presença dos refugiados é vista por moradores dos arredores como uma ameaça a sua segurança. As tentativas dos migrantes de cruzar para o Reino Unido levaram, no passado, a acidentes de trânsito, e há episódios isolados de violência.

TÁTICA

O paquistanês Adnan Ahmad, 24, chegou a Calais há um mês. Sua viagem levou sete meses, passando por Irã, Turquia, Grécia, Macedônia, Sérvia, Hungria, Áustria e Itália. Parte do caminho foi feito a pé, outra parte de barco de borracha. O trajeto custou R$ 5.000, via agente ilegal.

Editoria de arte/folhapress

Assim como outros refugiados que conversaram com a Folha, nem sempre revelando seus nomes, Ahmad passa os dias em Calais imerso na ideia de que o Reino Unido é Pasárgada. "É o melhor da Europa. Lá respeitam os direitos humanos."

Ele já tentou cruzar sete vezes. Em duas delas, conseguiu pular a cerca e entrar em um caminhão, mas foi descoberto por cães farejadores. A tática dos refugiados envolve parar um veículo com algum obstáculo, como um tronco de árvore, e esconder-se entre a cabine e a carroceria -o que ocorre, em geral, à noite.

Ahmad não ouviu o anúncio francês de que planejam fechar o campo. Quando é informado pela reportagem, dá de ombros. "E como é que vão fazer? Para onde vamos? Para Paris? Vou ficar."

O cenário preocupa organizações como a Médicos Sem Fronteiras, que oferecem apoio psicológico a refugiados, em especial aos 800 menores de idade desacompanhados. "Eles estão completamente desprotegidos", diz Marie Elizabeth Ingres, uma porta-voz do grupo.

"Estamos preocupados com o que pode ocorrer. Não há lugar para essas pessoas na França. Se esse campo for desmantelado, o governo precisa oferecer abrigos. Ou os refugiados vão para a rua."

Mas parte de quem está alojado ali, em tendas, não quer ir às ruas nem cruzar para o Reino Unido. Exaustos pelo movimento constante, preferem ficar em Calais, onde as organizações humanitárias lhes dão roupa e comida.

Um grupo de sudaneses diz à Folha que esse campo, apesar de todos os revezes, é melhor do que seu país natal, onde eram perseguidos pelo governo, e também melhor do que outras nações europeias onde estiveram.

"Qualquer lugar é melhor do que o Sudão ou do que a Itália. Os policiais italianos me atacavam com pistolas elétricas", diz Khalid Abd al-Rahman, 27. "Eu ficaria dez anos aqui", afirma Hamad Ibrahim Adam, 34.
Mas a vida desse grupo, em Calais, está limitada ao campo de refugiados. Passam o dia entre a lama e os banheiros químicos, ouvindo música diante das tendas.

Eles não caminham os cinco quilômetros que lhes separam do centro histórico da cidade, com ruínas medievais, cafés e parques públicos. "Temos medo da reação das pessoas. Há preconceito porque somos negros, porque somos refugiados."

AUSÊNCIA DO ESTADO

Policiais na entrada do campo de Calais apenas acenam à reportagem, que passa. O governo francês vistoria os entornos, mas sua gestão não adentra as ruas entre arbustos e as tendas na areia.

Na ausência do Estado, refugiados orbitam em torno de uma série de organizações humanitárias. Eles também se organizam entre si, distribuindo-se pela área de acordo com o seu país de origem.

Por querer se integrar à vida fora do campo, centenas de refugiados recorrem às escolas comunitárias para aprender inglês e francês.

Philippe Huguen/AFP Photo
Migrant children attend a lesson at the Jules Ferry day centre next to the so-called
Crianças durante aula em centro próximo ao acampamento de refugiados em Calais, no norte da França

Sentados em salas de aula ou em mesas no pátio, repetem as frases dos professores. "Tem água? Estou com sede", ensaia uma criança.

A Escola Laica é uma das principais instituições ali, com 500 estudantes por dia e 14 professores. O voluntário Marco Mark, 34, veio do Reino Unido para ajudar na gestão. As barracas foram construídas com o material doado por meio da internet.

"O governo não se importa com essas pessoas. Enxerga-os como animais", diz. Mark afirma que, nos últimos 14 meses de trabalho voluntário, aprendeu também com os refugiados: hoje já entende árabe e pashto, uma das línguas faladas no Afeganistão.

Em outra escola, a Jungle Books, há uma biblioteca comunitária e reuniões dos alcoólicos anônimos. O responsável pelo local, que se identifica apenas como Max, diz que o ensino é uma das maneiras de ajudar os refugiados a vencer o preconceito.

Há carência de livros, com apenas um dicionário francês-árabe, mas, por ora, não faltam professores. Enquanto a reportagem conversa com Max, um jovem britânico se aproxima para dizer que acaba de chegar e quer dar aulas.

"Mas os professores precisam voltar para o ano letivo, que está começando, e no inverno as condições de trabalho vão ser muito mais difíceis, afirma Max. Os voluntários dormem no campo.

As cozinhas também têm um papel especial, alimentando as multidões. Uma das maiores é a Cozinha em Calais, mantida por um grupo de jovens da Malásia. O voluntário Abd al-Rahim Rahman, 24, recebe a Folha em sua tenda e oferece um café.

Rahman, que já cozinhou em países como Laos e Vietnã, chegou a Calais há dez dias. "Este lugar é bem mais difícil", afirma. "Há protestos de refugiados todos os dias."

A Cozinha em Calais serve cerca de 1.500 refeições por dia, como frango com arroz. Tudo é preparado a partir de ingredientes doados, um desafio constante –eles usaram, por exemplo, 160 quilos de arroz e 200 quilos de frango no último dia 10.

Refugiados também ajudam na cozinha, e dez deles garantem a segurança na hora da distribuição da comida. Entre eles, o iraquiano Sabah, 34, e o sírio Ziad, 27 –eles não dizem o sobrenome.

Ambos deixaram seus países em meio a conflitos. Encontraram, porém, outras dificuldades na Europa, incluindo o preconceito. "Estivemos em Paris, mas era impossível. A polícia atacava a gente", diz Sabah. Os amigos, que se conheceram em Calais, planejam ir a Londres.

COMÉRCIO

A vida social, no campo, passa também pelos diversos restaurantes abertos por refugiados, onde se serve a comida tradicional de seus países. Há lojas que vendem tênis, bugigangas, vegetais e cigarros, entre outras coisas.

Um ponto de informações, que oferece conselho legal a quem busca asilo, é mantido pelos refugiados. Há redes de wi-fi, mantidas por uma ONG.

Em um dos extremos do campo, um cabeleireiro afegão cobra quase R$ 20 por um corte -experimentado e aprovado pela reportagem. Mas lamenta a falta de clientes, diferentemente de sua Cabul natal. "Não há trabalho."


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