Folha de S. Paulo


Para analistas, Coreia do Norte não é louca, mas completamente racional

A Coreia do Norte é irracional? Ou só finge ser? Ameaças de guerra, ataques ocasionais contra a Coreia do Sul, líderes excêntricos e propaganda exagerada são alguns dos motivos dados pela Coreia do Norte para suscitar essas perguntas.

Com o avanço de seu programa nuclear e de mísseis, com um quinto teste nuclear na semana passada, essa preocupação se tornou mais urgente.

Mas cientistas políticos vêm repetidamente considerando essa questão e, na maioria das ocasiões, chegam à mesma resposta: o comportamento da Coreia do Norte, longe de insano, é completamente racional.

KCNA
This undated picture released from North Korea's official Korean Central News Agency (KCNA) on September 13, 2016 shows North Korean leader Kim Jong-Un inspecting Farm No. 1116 under KPA Unit 810 at an undisclosed location in North Korea. / AFP PHOTO / KCNA / KCNA ORG XMIT: TOK007
Em foto divulgada pela agência do governo norte-coreano, o ditador Kim Jong-Un inspeciona fazenda

A beligerância que o país exibe, concluem, parece calculada para manter no poder um governo fraco e isolado que de outra forma sucumbiria às forças da História. Suas provocações geram tremendo perigo, mas evitam o que Pyongyang vê como ameaça ainda maior: uma invasão ou colapso.

O cientista Denny Roy escreveu em 1994, em um artigo acadêmico que continua a ser citado, que a reputação do país como "Estado louco" e "insensatamente violento" havia "funcionado em benefício da Coreia do Norte", bloqueando as ações de inimigos mais poderosos. Mas essa imagem, ele concluía, era "em larga medida um produto de incompreensão e propaganda".

De muitas maneiras, isso é mais perigoso do que a irracionalidade. Embora o país não deseje guerra, seu cálculo estratégico o leva a cultivar o risco constante de um conflito –e a se preparar para evitar uma derrota, caso a guerra aconteça, potencialmente pelo uso de armas nucleares. Esse é um perigo mais sutil, mas ainda assim grave.

Por que os analistas acreditam que a Coreia do Norte é racional? Quando os analistas políticos definem um Estado como racional, não estão dizendo que seus líderes sempre tomam as melhores decisões, ou decisões moralmente corretas, ou que eles representem exemplos de estabilidade mental.

Em lugar disso, estão afirmando que o Estado se comporta de acordo com aquilo que vê como seus interesses, o primeiro dos quais é a autopreservação.

Quando um Estado é racional, ele nem sempre encontrará sucesso em termos de agir de acordo com seus melhores interesses, ou de equilibrar metas de curto e de longo prazo, mas pelo menos tentará fazê-lo. Isso permite que o mundo direcione os incentivos de um Estado, conduzindo-o na direção desejada.

Estados são irracionais quando não seguem seu autointeresse. Na forma "forte" de irracionalidade, os líderes são tão lunáticos que se mostram incapazes de determinar quais são seus interesses. Na versão "branda", fatores domésticos tais como o zelo ideológico ou disputas internas pelo poder distorcem os incentivos, fazendo que os Estados se comportem de maneiras contraproducentes mas ao menos previsíveis.

As ações da Coreia do Norte, embora repulsivas, parecem servir bem ao seu autointeresse racional, de acordo com um estudo publicado em 2003 por David Kang, um cientista político que hoje leciona na Universidade do Sul da Califórnia.

Kim Won-Jin/AFP Photo
Soldiers applaud during a celebration rally attended by service members and civilians following the country's successful test of a nuclear warhead on September 9, in Kim Il Sung Square in Pyongyang on September 13, 2016. North Korea is ready to conduct another nuclear test at any time, South Korea's defence ministry said on September 12, just days after Pyongyang sparked worldwide condemnation with its fifth and most powerful test. / AFP PHOTO / Kim Won-Jin
Soldados aplaudem durante celebração do teste nuclear realizado pelo governo da Coreia do Norte

Dentro de suas fronteiras e no exterior, ele constatou, os líderes norte-coreanos determinam com astúcia os seus interesses e agem em defesa deles. (Ele confirmou em e-mail que essas conclusões ainda se aplicam.)

"Todas as indicações apontam para sua capacidade de tomar decisões sofisticadas e administrar a política palaciana, interna e internacional com extrema precisão", escreveu Kang. "Não é possível argumentar que se trate de líderes irracionais, incapazes de fazer cálculos que correlacionem meios a fins".

O comportamento aparentemente desequilibrado da Coreia do Norte começa pela tentativa do país de resolver dois problemas que teve de encarar quando a Guerra Fria acabou e aos quais deveria ter sido incapaz de sobreviver.

Um deles era militar. A península coreana, que ainda vive formalmente em estado de guerra, havia avançado de um impasse entre soviéticos e norte-americanos a um desequilíbrio forte em favor do sul. O norte estava exposto, e sua única proteção era uma China cujo foco principal era a melhora de seu relacionamento com o Ocidente.

O outro problema era político. As duas Coreias afirmavam representar todos os coreanos, e por décadas tiveram níveis de desenvolvimento semelhantes. Mas quando chegaram os anos 1990, o sul começou a demonstrar liberdade e prosperidade exponencialmente maiores. O governo de Pyongyang tinha pouco motivo para existir.

A liderança norte-coreana resolveu ambos os problemas por meio de algo que ela chama de "Songum", ou seja, uma política que confere prioridade total às Forças Armadas. Isso colocou o país em estado de guerra permanente, justificando a pobreza do Estado como necessária a manter suas imensas Forças Armadas, justificando sua opressão como forma de expor os traidores internos, e sustentando sua legitimidade por meio de um nacionalismo exagerado que é comum encontrar em tempo de guerra.

Vista de fora, as ações da Coreia do Norte parecem insanas. Sua propaganda interna descreve uma realidade que não existe, e o país parece determinado a praticamente provocar uma guerra na qual sairia certamente derrotado.

Mas de dentro da Coreia do Norte, essas ações fazem perfeito sentido. E, com o tempo, a reputação do governo por irracionalidade se tornou uma vantagem, igualmente.

Os estudiosos atribuem essa comportamento à "teoria do louco" –uma estratégia criada por ninguém menos que Richard Nixon, sob a qual o líder deve cultivar uma imagem de beligerância e imprevisibilidade a fim de forçar os adversários a caminhar com mais cuidado.

Roy disse em entrevista que a Coreia do Norte "intencionalmente emprega uma postura de aparente aceitação de riscos absurdos, e de disposição de ir à guerra como meio de tentar intimidar seus adversários".

Mas essa estratégia só funciona porque, mesmo que a beligerância seja apenas aparente, o perigo que ela cria é muito real.

Uma Coreia do Norte racional é mais perigosa? Nesse sentido, é a racionalidade da Coreia do Norte que a torna mais poderosa. Porque o país acredita que só pode sobreviver ao manter a península coreana próxima de uma guerra, cria o risco de que exatamente isso ocorra, por acidente ou erro de cálculo.

A Coreia do Norte está ciente desse risco mas parece acreditar que não tem escolha. Por isso, e talvez por conta da invasão ao Iraque liderada pelos Estados Unidos e da intervenção da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Líbia contra Muammar Gaddafi, os norte-coreanos parecem honestamente temer uma invasão norte-americana.

E isso é racional: Estados fracos que enfrentam inimigos mais poderosos precisam ou buscar a paz –o que a Coreia do Norte não pode fazer sem ameaçar sua legitimidade política– ou encontrar uma maneira de sobreviver ao conflito.

O programa nuclear da Coreia do Norte, acreditam alguns analistas, foi criado para impedir uma invasão norte-americana ao permitir que o país realize ataques preventivos contra bases militares norte-americanas próximas e contra os portos da Coreia do Sul, e mais adiante ameaçar um ataque com mísseis ao território continental dos Estados Unidos.

Embora os norte-coreanos ainda não tenham essa capacidade, analistas acreditam que isso se tornará realidade dentro de uma década. Essa é a culminação da racionalidade da Coreia do Norte, em algo conhecido como teoria do desespero.

Sob essa teoria, quando Estados enfrentam duas escolhas terríveis, eles ficarão com a menos ruim –mesmo que, em circunstâncias normais, ela fosse custosa demais para ser aceita.

No caso da Coreia do Norte, isso significa criar condições para uma guerra que o país provavelmente perderia. E pode significar preparar um esforço final de sobrevivência por meio de ataques nucleares múltiplos aos seus inimigos, arriscando retaliação nuclear em troca de uma ínfima probabilidade de sobrevivência.

Os líderes da Coreia do Norte toleram esse perigo porque, em seu cálculo, não lhes resta outra escolha. Os demais de nós compartilhamos desse risco –minúsculo, mas ainda assim maior que zero–, quer o queiramos, quer não.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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