Folha de S. Paulo


Acordo com as Farc expõe traumas de vítimas de atentados na Colômbia

Fazia muito frio na noite do dia 7 de fevereiro de 2003, especialmente naquela área mais alta da capital colombiana, onde estão os bairros nobres de Bogotá. Apertados e cobertos num sofá, vendo um filme, estavam Martha Amorocho, seu marido, Francisco, e o filho caçula do casal, Alejandro, de 20 anos.

O telefone tocou. Era Juan Carlos, o mais velho, de 22, chamando o irmão do El Nogal —um luxuoso clube social e esportivo.

"Esse era o tipo de família que éramos. Numa sexta à noite, nosso caçula preferia estar vendo um filme com os pais em vez de estar na farra na rua, e depois, o irmão mais velho o chamava para que comessem juntos um hambúrguer", conta Martha em entrevista à Folha, no apartamento em que vive há mais de 30 anos, a poucas quadras do El Nogal.

Mas o retrato da família feliz e unida que Martha traça antes mesmo de a reportagem fazer a primeira pergunta, começou a desmoronar naquela noite.

Depois do telefonema de Juan Carlos, Alejandro agasalhou-se e se despediu dos pais. Avisou que levaria o carro, apesar de o clube estar a cinco quadras do apartamento, porque depois de comerem os irmãos iriam levar a namorada de Juan Carlos à sua casa.

Às 20h15, quando Alejandro acabara de entrar no clube, uma explosão sacudiu o bairro. A cafeteria do El Nogal, onde Juan Carlos e a namorada estavam, desabou, e uma viga atingiu o rapaz na cabeça, causando uma grave lesão craniana. Enquanto isso, antes mesmo de ter a oportunidade de descer do carro, Alejandro morreu imediatamente.

"Então, de uma hora para outra, eu tinha um filho morto, enquanto o outro me foi devolvido, após 13 dias na UTI, com sequelas graves. Não parecia mais um rapaz de 22 anos, mas sim um bebê. Não falava, não comia, e tinha de usar fraldas", conta Martha.

A explosão do El Nogal foi um dos mais graves ataques das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em Bogotá. O enfrentamento da guerrilha com o Estado colombiano caracterizou-se por ser essencialmente rural.

Mas, daquela vez, o alvo foi o principal centro urbano do país. No dia seguinte, o jornal norte-americano "New York Times" classificava o episódio como "uma bomba no coração da elite colombiana".

Apesar de seu forte esquema de segurança, o El Nogal havia sido infiltrado por um professor de squash, John Freddy Arellan, cujo tio, Teofilo Forero, era comandante de uma das frentes das Farc.

Naquela noite, Arellan entrou no local com um carro carregado com 200 quilos de explosivos. Estacionou-o no terceiro andar, onde foi detonado, causando 36 mortes e deixando mais de 200 pessoas feridas.

Entre as vítimas fatais estavam, além de sócios e convidados, 12 empregados do clube.

"Muitos se referem a esse como um atentado contra os ricos, mas ali morreram 12 funcionários, tenho muitos colegas que ficaram gravemente feridos. Na hora do desespero, todos estávamos nos ajudando como seres humanos sem distinção de classe", conta o ex-garçom do clube, Miguel Pinilla.

Rodrigo Arangua - 7.set.2003/AFP
Carro se incendia após a explosão de uma bomba em atentado das Farc ao clube El Nogal, em Bogotá
Carro se incendia após a explosão de uma bomba em atentado das Farc ao clube El Nogal, em Bogotá

AUTORIA

Por muitos anos, as Farc negaram ter provocado o atentado. Em 2008, porém, o Exército, ao executar um dos principais líderes da guerrilha, Raúl Reyes, encontrou em seu computador o detalhamento do plano. Hoje, as Farc o reconhecem como de sua autoria.

Martha esteve em Havana, durante as negociações entre as Farc e o governo, para participar da comissão de vítimas que ajudou a elaborar os artigos relacionados à reparação que constam do acordo entre as duas partes —que vai a plebiscito no próximo dia 2.

"Eu tive discussões aqui em casa. Meu marido ficou devastado, não queria aceitar [ela abaixa a voz, pois Francisco está no quarto ao lado durante a entrevista]. Mas eu pensei que só se pode construir um país em paz com uma mudança dentro de cada um. Então fui", diz Martha.

"Minhas opções eram: ou eu cultivo a raiva e o desejo de vingança, e me transformo em alguém parecido àqueles que mataram meu filho ou me decido a semear esperança. Preferi a segunda alternativa."

Luis Acosta - 09.fev.2003/AFP
Colombianos protestam em Bogotá pedindo paz entre as Farc e o governo após o ataque ao El Nogal
Colombianos protestam em Bogotá pedindo paz entre as Farc e o governo após o ataque ao El Nogal

Em Havana, Martha encontrou-se com as lideranças das Farc. Não houve enfrentamento. O combinado era que cada um tivesse um pequeno espaço de tempo para dizer algo.

"Eu não sabia o que dizer, então segurei a mão do integrante das Farc que estava a meu lado e pedi a um padre que havia ali que rezássemos todos juntos o Pai Nosso."

Depois da sessão, na hora do almoço, Martha conta que, por ter se atrasado para pegar sua comida, as mesas com representantes do Estado estavam todas cheias.

"Aí vi uma mais vazia, e era a das Farc, estavam Marcos Calarcá e Pablo Catatumbo [dois dos líderes da guerrilha]. E eu ali, com meu prato de feijão [solta uma risada nervosa]. Pedi, então, para me sentar, e eles disseram que sim, e me perguntaram como estava Juan Carlos."

Ela relata que não sentiu rancor, nem vontade de dizer nada agressivo. "Apenas perguntei para que havia servido para eles a morte do meu filho? Mas eles não responderam."

Martha reconhece que sua posição é distinta da de outras vítimas, sobretudo daquelas que pregam que se vote "não" no plebiscito.

"Tem gente que quer, a todo custo, ver esses guerrilheiros presos. Mas de que me serve? Qualquer reparação é simbólica, pois meu filho não vai voltar. Que diferença faz que os assassinos peguem um, dois ou dez anos de cadeia? É por isso defendo o "sim" e, mais do que isso, um caminho de mudança pessoal de cada um de nós frente a essa violência que a Colômbia vive desde muito antes das Farc".

Dos que causaram a explosão que atingiu seus filhos, diz querer apenas a "verdade, o reconhecimento e um pedido de perdão".

Desde o acidente, Martha participa de grupos de vítimas que tentam tratar a dor usando técnicas asiáticas, norte-americanas, e que realizam retiros espirituais. Apega-se muito à religião. No canto do espaçoso apartamento, há um pequeno altar com imagens religiosas.

"Continuamos celebrando tudo, como se Alejandro estivesse sempre aqui, Natal, Dia das Mães, e ainda frequentamos o El Nogal. Mudar-se do país, mudar completamente de vida, como muitos fizeram, não adianta nada, pois não levaria nossa dor embora."

Seu filho mais velho, Juan Carlos, depois de longa recuperação formou-se na universidade e acaba de ter uma filha.

"Eu não quero deixar para eles um mundo de dor e de ressentimento. Quero deixar um mundo de esperança", resume.

PÓS-CONFLITO

Sobre o pós-conflito, ela diz esperar "que os colombianos entendam que colocar em acordo 48 milhões de pessoas [população da Colômbia] é impossível".

E lança a seus compatriotas a pergunta: "Os guerrilheiros são 9 mil pessoas, em um país de 48 milhões. Será mesmo que não podemos incluí-los? Será que é tão difícil assim? Eu acho que vale a pena fazer esse esforço."


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