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Nobel iraniana critica veto a burquíni: 'Barba na Europa não é proibido'

Gabo Morales/Folhapress
A ativista iraniana dos direitos humanos Shirin Ebadi participa de palestra no evento Fronteiras do Pensamento, na Sala Sao Paulo, centro da capital paulista
A ativista iraniana dos direitos humanos Shirin Ebadi participa de palestra em SP, em 2011

Exilada desde 2009 devido à perseguição que sofre por criticar o regime iraniano, a ativista Shirin Ebadi, vencedora do Nobel da Paz em 2003, costuma dizer que vive em aeroportos. Tem um escritório em Londres, mas passa mais tempo viajando para "dar voz a seu povo".

Conhecida por sua luta pelos direitos das mulheres e das crianças, a iraniana credita a recente proibição dos burquínis (mistura da vestimenta islâmica burca com biquíni) na França mais à cultura patriarcal do que à religião. "Ter barba na Europa não é proibido, mas usar burquíni é. Qual a diferença?"

Ebadi foi a primeira juíza de seu país, mas deixou a função após a Revolução Iraniana (1979) proibir mulheres de ocuparem o cargo.

Nesta semana, ela esteve em Buenos Aires para participar de um encontro contra discriminação e voltou a denunciar o governo de Hasan Rowhani de violar direitos humanos.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida à Folha e ao portal argentino Infobae.

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Folha - Em agosto, várias cidades da França proibiram que mulheres usassem burquínis na praia. Depois, houve uma reversão da decisão. Qual a sua avaliação em relação ao debate?
Shirin Ebadi - Os homens têm direito de se vestir como querem. Barba longa pode ser associada ao islã fundamentalista. Os talibãs e os membros do Estado Islâmico, por exemplo, usam barba longa. Ter barba na Europa não é proibido, mas usar burquíni é. Qual a diferença? A raiz desse problema não tem a ver com a cultural patriarcal? Qualquer limitação vai para a mulher. Ninguém manda os homens fazerem a barba.

Mas não há também um preconceito religioso?
Sim, tem razão. Mas é preciso lembrar que um juiz na França voltou a permitir [o uso do burquíni].

Nos países ocidentais, costuma-se falar que as mulheres islâmicas são reprimidas pelos homens. Como a senhora vê o direito das mulheres no Ocidente?
Quando vejo o Ocidente, me dou conta que a origem de tudo isso [desigualdade de gênero] está na cultura patriarcal, que se vê em todas as partes do mundo. Eu estava na Libéria, um país africano onde toda a população é cristã. Mais da metade das mulheres do país tem a genital mutilada. Perguntei à presidente do país [Ellen Johnson-Sirleaf] por que não se fazia nada para mudar isso. Infelizmente, um grupo de mulheres quer a mutilação porque os homens não querem se casar com uma mulher que não tenha passado por isso.

Naquele país, não há muçulmanos. É uma cultura patriarcal, que está em todas as partes do mundo. Em todas as religiões abraâmicas, acusa-se a uma só pessoa, Eva. Inclusive Cristo foi crucificado para anular o pecado de Eva. É correta essa interpretação de um livro sagrado? Por que nenhuma mulher é nomeada como papa?

Eu, que sou muçulmana, por que tenho que rezar atrás de um homem? Essa discriminação sistemática tem origem na cultura patriarcal. Por isso, não acredite nessa história do islã [ser uma religião machista]. O tema é mais profundo. A discriminação contra a mulher sempre existiu. Nós esquecemos a raiz do problema. Estamos cortando os galhos, mas, se esquecemos que a raiz é outra, nada será solucionado.

Mas como a senhora vê os direitos das mulheres em países como Brasil e Argentina?
Nesses países, a mulher vive melhor do que nos países que citei, mas vocês também não se livram da discriminação. Por exemplo: aqui não está permitido o aborto. Isso quer dizer que uma mulher não é dona de seu corpo.

O novo governo brasileiro foi criticado por não ter mulheres nem negros em seu primeiro escalão. Como a senhora analisa isso?
Acredito na igualdade das pessoas. A religião e a cor da pele não devem ser causa de separação. Ser branco não deve ser vantagem, nem ser homem [como no caso brasileiro]. Mas é importante que as decisões políticas tomadas sejam adequadas.

No ano passado, a senhora disse estar decepcionada com Dilma Rousseff por ela ter se abstido de votar a resolução que renovou o mandato do relator especial de direitos humanos da ONU para o Irã. Como a senhora vê a relação do governo brasileiro hoje com o Irã? Espera que haja uma mudança com Michel Temer?
O governo iraniano viola sistematicamente os direitos humanos. Depois de China, é o país com o maior número de execuções. Algumas são cometidas na rua. Alguns dos executados são menores de 18 anos ou são presos políticos. A discriminação à mulher é terrível. Cada mês, mando um informe à ONU. Há anos, se aprovam na ONU resoluções recriminando o governo iraniano pela violação de direitos humanos.

A Assembleia Geral da ONU faz uma votação para aprovar essas resoluções condenando os governos, mas o Brasil sempre vota a favor do governo iraniano. Eu respeito muito o [ex-presidente] Lula, porque ele era representante dos trabalhadores. Lula foi ao Irã [em 2010] e só teve uma audiência com [o ex-presidente Mahmud] Ahmadinejad, que é um presidente criminoso. Tínhamos na prisão cerca de 50 ativistas trabalhadores.

As famílias deles queriam ver Lula. Lula não os recebeu. Acha que isso seja correto? Esperávamos que Lula visse essas famílias, pois eles têm a mesma origem. Por isso, digo: espero que os dois povos sejam amigos, deixemos de lado esses governos. Não conheço a situação do [novo governo do] Brasil, não posso falar.

Fethi Belaid/AFP
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Tunisiana entra na água usando um burquíni em uma praia perto da capital, Túnis, em agosto

No início do ano, as sanções internacionais ao Irã foram suspensas após o país cumprir o acordo nuclear. A situação econômica e social do país melhorou desde então?
Sou a favor do acordo que houve porque a continuação das sanções prejudicaria a população civil. As pessoas estavam pobres. Mas isso não mudou a política interna e externa de Irã. O Irã permitiu à Rússia instalar uma base militar para os aviões russos poderem aterrissar no oeste do Irã. Ali, colocam combustível e voam à Síria, onde jogam bombas. Sou contra isso.

Mas houve melhora econômica e social com o fim das sanções?
Até agora não. O governo iraniano ajuda a manter a guerra na Síria, ajuda economicamente os xiitas no Iraque e no Afeganistão e o Hezbollah no Líbano. Não sobra dinheiro para os iranianos. Mas tenho que dizer que estou contente que levantaram as sanções porque podíamos estar em uma situação ainda pior.

O Irã está mais aberto depois que Ahmadinejad deixou a Presidência, em 2013?
Não mudou nada.

Como a senhora analisa o acordo fechado entre Irã e Argentina para que iranianos acusados de envolvimento no atentado à Amia [entidade judaica que sofreu um ataque terrorista em 1994] fossem interrogados? Há suspeitas de que a Argentina receberia vantagens comerciais em troca...
Não posso opinar claramente sobre esse assunto, mas posso dizer que o governo iraniano foi acusado em vários casos fora do Irã e que, depois, se comprovou sua culpabilidade. Um caso famoso é o do restaurante Mykonos, em Berlim [no qual três opositores do governo iraniano e o tradutor deles foram assassinados em 1992]. No julgamento, se comprovou que a ordem [de assassinato] foi da própria embaixada do Irã. Eu não li os detalhes desse caso [Amia], mas não é improvável que o governo iraniano seja o culpado, porque já o fez em outras ocasiões.


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