Folha de S. Paulo


Difusão de notícias falsas para semear divisões é arma poderosa da Rússia

Enquanto corre solta na Suécia uma discussão nacional sobre se o país deveria ou não entrar em uma parceria militar com a Otan, as autoridades de Estocolmo se depararam de repente com um problema preocupante: uma enxurrada de informações distorcidas ou pura e simplesmente falsas circuladas nas redes sociais, confundindo as percepções públicas sobre a questão.

O que se alegava era alarmante: se a Suécia, país não membro da Otan, firmasse o acordo, a aliança armazenaria armas nucleares secretas em solo sueco; a Otan poderia atacar a Rússia a partir da Suécia, sem a aprovação do governo sueco; soldados da Otan, dispondo de imunidade penal, poderiam estuprar suecas sem medo de ser indiciados.

Todas as "notícias" eram falsas, mas a desinformação começou a transbordar para a mídia noticiosa tradicional, e quando o ministro da Defesa, Peter Hultqvist, viajou pelo país para promover o pacto com a Otan em discursos e reuniões com a população, foi interrogado repetidas vezes sobre as histórias fabricadas.

Sua porta-voz, Marinette Nyh Radebo, comentou: "As pessoas não estão acostumadas com isso e perguntavam no que podiam acreditar, no que deveriam acreditar".

Sergey Ponomarev/The New York Times
FILE -- Unidentified soldiers in Crimea, March 6, 2014. Russia reclaimed the territory from Ukraine, and Russian President Vladimir Putin later admitted that the troops were Russian special forces. Using both conventional media and covert channels, the Kremlin relies on disinformation to create doubt, fear and discord in Europe and the U.S. (Sergey Ponomarev/The New York Times) - XNYT8
Em foto de março de 2014, soldados marcham na Crimeia, território ucraniano anexado pela Rússia

Como frequentemente ocorre em casos como esse, as autoridades suecas nunca conseguiram identificar a fonte das notícias falsas. Mas vários analistas e especialistas americanos e europeus em inteligência apontam para a Rússia como principal suspeita, notando que impedir a ampliação da Otan é uma das metas principais da política externa do presidente Vladimir Putin, que invadiu a Geórgia em 2008 em grande medida para prevenir essa possibilidade.

Na Crimeia, no leste da Ucrânia e agora na Síria, Putin exibe uma força militar modernizada e mais musculosa. Mas ele não possui a força econômica e o poderio total para desafiar abertamente a Otan, a União Europeia ou os Estados Unidos.

Em vez disso, vem investindo pesado num programa de utilização de desinformação como arma, recorrendo a meios diversos para semear dúvidas e divisões. A finalidade é enfraquecer a coesão entre os países membros da Otan, promover a discórdia entre suas políticas internas e amortecer sua oposição à Rússia.

"Moscou enxerga os assuntos mundiais como um sistema de operações especiais e acredita sinceramente que ela própria é alvo de operações especiais ocidentais", disse Gleb Pavlovsky, que ajudou a estabelecer a máquina de informações do Kremlin antes de 2008. "Tenho certeza de que existem muitos centros, alguns vinculados ao Estado, que estão envolvidos na criação desse tipo de notícia falsa."

Plantar histórias falsas não constitui novidade; a União Soviética dedicou recursos consideráveis a esse esforço durante as batalhas ideológicas da Guerra Fria. Hoje, porém, a desinformação é vista como parte importante da doutrina militar russa e está sendo dirigida para discussões políticas em países-alvos, em volume e com sofisticação muito maiores que no passado.

O fluxo de "notícias" enganosas e inverídicas é tão grande que tanto a Otan quanto a União Europeia criaram departamentos especiais para identificar e refutar desinformação, especialmente quando emana da Rússia.

Os métodos clandestinos empregados pelo Kremlin se manifestaram nos EUA também, dizem autoridades americanas, identificando a inteligência russa como provável fonte de e-mails vazados do Comitê Nacional Democrata que causaram constrangimento à campanha presidencial de Hillary Clinton.

O Kremlin utiliza tanto mídia convencional –a agência de notícias Sputnik e a emissora de televisão RT– quanto canais clandestinos, como na Suécia, que quase sempre são impossíveis de rastrear.

A Rússia explora as duas abordagens, formando um ataque abrangente, disse neste ano Wilhelm Urme, porta-voz do Serviço de Segurança sueco, ao apresentar o relatório anual da agência. "Estamos falando de tudo, desde trolls da internet até propaganda e desinformação veiculada por empresas de mídia como a RT e a Sputnik", explicou ele.

A finalidade fundamental da "dezinformatsiya", a desinformação russa, dizem especialistas, é solapar a versão oficial dos fatos –até a própria ideia de que existe uma versão verídica dos fatos– e fomentar uma espécie de paralisia política.

Mauricio Lima/The New York Times
FILE -- Debris from Malaysia Airlines Flight 17, which was shot down over Ukraine in 2014 by insurgents using a missile supplied by Russia, in Grabovo, Ukraine, July 24, 2014. One of Russia’s theories was that Ukrainian fighter pilots had downed the airliner after mistaking it for the Russian presidential aircraft. Using both conventional media and covert channels, the Kremlin relies on disinformation to create doubt, fear and discord in Europe and the U.S. (Mauricio Lima/The New York Times) - XNYT9
Destroços do avião da Malaysia Airlines, abatido na Ucrânia por insurgentes apoiados pela Rússia

Moscou nega terminantemente que utiliza desinformação para influir sobre a opinião pública ocidental e tende a qualificar acusações de ameaças abertas ou indiretas como "russofobia".

"Existe a impressão de que, como em uma boa orquestra, muitos países ocidentais acusam diariamente a Rússia de ameaçar alguém", disse a porta-voz do Ministério do Exterior russo, Maria Zakharova, em relatório recente do ministério.

É difícil rastrear desinformações individuais, mas na Suécia e em outros países especialistas foi detectado um padrão característico que associam a campanhas de desinformação geradas pelo Kremlin.

"A dinâmica é sempre a mesma: a desinformação se origina em algum lugar na Rússia, em sites da mídia estatal russa, em web sites diferentes ou em algum lugar desse tipo de contexto", disse o jornalista e advogado sueco Anders Lindberg.

"Então o documento falso se torna a fonte de um relato noticioso distribuído em sites da extrema esquerda ou extrema direita. As pessoas que usam esses sites para tomar conhecimento das notícias postam links para as reportagens, e os relatos vão sendo transmitidos. Ninguém sabe qual é sua origem, mas eles acabam virando questões cruciais em uma decisão sobre política de segurança."

Os tópicos podem variar, mas o objetivo é o mesmo, sugeriram Lindberg e outros. "O que os russos fazem é construir narrativas; eles não constroem fatos", disse Lindberg. "A narrativa subjacente é: 'Não confie em ninguém'."

O uso de informação como arma não é algum projeto idealizado por um especialista político do Kremlin, mas uma parte integral da doutrina militar russa, algo que algumas figuras militares seniores descrevem como uma frente de batalha "decisiva".

"O uso de meios não militares para alcançar metas políticas e estratégicas vem crescendo, e, em muitos casos, esses meios superam a força das armas em sua eficácia", escreveu em 2013 o general Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas russas.

Um dos alvos principais do Kremlin é a Europa, onde a ascensão da direita populista e a queda do apoio popular à UE estão criando uma plateia cada vez mais receptiva à abordagem russa conservadora, nacionalista e autoritária, sob Putin.

No ano passado o Parlamento Europeu acusou a Rússia de "financiar partidos radicais e extremistas" em seus Estados membros, e em 2014 o Kremlin fez um empréstimo de US$ 11,7 milhões à Frente Nacional francesa, de extrema-direita.

"Os russos são muito hábeis em cortejar todos que têm queixas da democracia liberal, desde a extrema-direita até a extrema-esquerda", disse Patrick Oksanen, editorialista do grupo sueco de jornais MittMedia. A ideia central transmitida, disse ele, é que "a democracia liberal é corrupta, ineficiente, caótica e, em última análise, não democrática".

Outra mensagem, esta em grande medida implícita, é que os governos europeus não são competentes para lidar com as crises que enfrentam, em especial a imigração e o terrorismo, e que seus líderes são todos fantoches dos Estados Unidos.

Na Alemanha, a preocupação com a violência de imigrantes cresceu depois de uma menina russo-alemã de 13 anos ter dito que foi estuprada por migrantes. Uma reportagem na televisão estatal russa aumentou a história. Mesmo depois de a polícia ter desmentido o relato, o chanceler russo, Sergei V. Lavrov, continuou a criticar a Alemanha.

No Reino Unido, disseram analistas, os veículos em língua inglesa do Kremlin foram fortemente a favor da campanha para a saída do país da UE, apesar de alegarem objetividade.

Na República Tcheca, reportagens alarmantes e sensacionalistas retratando os Estados Unidos, a UE e os imigrantes como vilões aparecem diariamente em um grupo de cerca de 40 web sites pró-Rússia.

Durante exercícios militares da Otan realizados no início de junho, artigos publicados nos sites sugeriram que Washington controla a Europa por meio da Otan, tendo a Alemanha como seu xerife local.

Ecoando a desinformação veiculada na Suécia, as reportagens diziam que a Otan planejava armazenar armas nucleares na Europa do leste e que atacaria a Rússia a partir dali sem buscar a aprovação das capitais locais.

Uma pesquisa de opinião feita recentemente pelo think tank European Values, de Praga, constatou que 51% dos tchecos enxergam a atuação dos Estados Unidos na Europa negativamente, apenas 32% a veem sob ótica positiva e pelo menos um quarto deles acredita em alguns elementos da desinformação.

A emissora RT frequentemente parece obcecada com os Estados Unidos, descrevendo a vida nesse país como sendo infernal. Em sua cobertura da Convenção Nacional Democrata, por exemplo, a televisão não citou os discursos, mas focalizou manifestações esparsas. Ela defende o candidato presidencial republicano, Donald Trump, que retrata como um azarão injustamente criticado pela grande mídia.

Margarita Simonyan, a editora chefe da RT, disse que a emissora está sendo identificada como ameaça porque oferece uma narrativa que destoa daquela do "establishment político-midiático anglo-americano". A RT, ela disse, quer oferecer "uma perspectiva que, de outro modo, faria falta na câmara de ecos da grande imprensa".

A desinformação de Moscou voltada ao Ocidente data de um programa da Guerra Fria conhecido entre os soviéticos como "medidas ativas". O esforço envolvia o vazamento ou mesmo redação de reportagens para jornais na Índia de postura semelhante à soviética, na esperança de que elas fossem republicadas no Ocidente, comentou o professor de Harvard Mark Kramer, especialista na Guerra Fria.

A história de que a Aids teria sido fruto de um projeto da CIA que fugiu do controle da agência se difundiu dessa maneira e continua a envenenar a discussão da doença até hoje, décadas mais tarde. Na época, antes da queda da União Soviética, em 1991, o Kremlin vendia o comunismo como alternativa ideológica. Hoje, dizem especialistas, o componente ideológico desapareceu, mas a meta de enfraquecer adversários permanece.

Seja qual for o método ou a mensagem, está claro que a Rússia quer vencer qualquer guerra de informação, como deixou claro recentemente Dmitry Kiselyev, o mais famoso âncora da televisão russa e diretor da organização que administra o Sputnik.

Falando neste verão no 75º aniversário do Burô Soviético de Informação, Kiselyev disse que a era do jornalismo neutro acabou. "Se nós fazemos propaganda, vocês também", ele disse, dirigindo sua mensagem a jornalistas ocidentais.

"Custa muito mais matar um soldado inimigo hoje do que custava na Segunda Guerra Mundial, na Primeira Guerra Mundial ou na Idade Média", disse ele em entrevista à rede estatal Rossiya 24. Embora o negócio da "persuasão" também custe mais caro hoje, ele disse, "se você consegue persuadir uma pessoa, não há necessidade de matá-la".

Colaborou EVA SOHLMAN, em Estocolmo, e LINCOLN PIGMAN, em Moscou

Tradução de CLARA ALLAIN


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