Folha de S. Paulo


Caso de cotista com autodeclaração rejeitada acende debate no Itamaraty

A partir da próxima segunda-feira (22), Lucas Nogueira Siqueira, 27, poderá assistir às aulas do Curso de Formação do Instituto Rio Branco, necessário para a admissão na carreira de diplomata.

Siqueira, que havia se inscrito nas cotas para negros no concurso para diplomata, teve a autodeclaração negada após passar no concurso e conseguiu uma liminar, em julho, para fazer o curso.

Fotomontagem
Foto enviada por Lucas Nogueira Siqueira, que teve a autodeclaração como negro contestada em concurso do Itamaraty. A foto foi feita por um fotógrafo contratado, em estúdio e anexada ao processo de Lucas. Foto: Arquivo Pessoal ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***//Foto de Lucas Nogueira Siqueira (à direita) presente em denuncia apresentada contra sua autodeclaracao de negro no concurso do Itamaraty. Foto: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
À esq., foto de Siqueira tirada por fotógrafo, que diz não ter filtro, contratado pela defesa; à dir., foto que consta na denúncia

No processo, que corre em um tribunal regional do Distrito Federal, a defesa de Siqueira apresentou laudos de sete dermatologistas identificando o candidato como pardo, com base na chamada escala de Fitzpatrick, que estabelece seis categorias de pele em razão de sua resposta à radiação ultravioleta. Siqueira estaria no nível 4 (pele morena moderada), segundo os dermatologistas.

À Folha, o candidato afirmou ser pardo. "Nunca na minha vida fui considerado branco, até que os candidatos reprovados no concurso começaram a usar algumas fotos do Facebook para questionar a minha cor", disse.

Em dezembro, após a divulgação do resultado do concurso, dois advogados apresentaram uma denúncia ao Ministério Público Federal questionando a autodeclaração de Siqueira, anexando fotos de seu perfil na rede social como prova de que o candidato não seria pardo.

"Tem que ficar claro, pelos critérios fenotípicos [de aparência], que você possa ter sofrido preconceito em razão da cor da pele, por ser preto ou pardo. No caso dele, a gente observou que as características fenotípicas eram muito mais de uma pessoa branca do que de um negro", diz o advogado Danilo Prudente, um dos autores da denúncia.

Siqueira não permitiu ser fotografado pela Folha e enviou a foto feita por fotógrafo em estúdio usada na defesa.

Diante de uma recomendação do Ministério Público, o Itamaraty estabeleceu, em dezembro, que os cotistas aprovados deveriam fazer sua inscrição "perante sete diplomatas integrantes do Comitê Gestor de Gênero e Raça (CGGR)" do ministério, para "esclarecer eventuais dúvidas" sobre sua "condição de preto ou pardo".

A defesa contestou a convocação dessa etapa, não prevista no edital de abertura do concurso. A comissão formada por diplomatas (segundo o Itamaraty, "negros, não negros, homens e mulheres") rejeitou a autodeclaração de Siqueira e mais três candidatos.

A liminar que permitiu que ele frequente as aulas, mas não garante sua entrada na carreira diplomática mesmo se aprovado no curso, levou em conta a ausência de previsão desta etapa no edital. O processo judicial continua em curso.

O texto do edital prevê que, "na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso". Para o professor de direito da FGV Oscar Vilhena, isso deixa um espaço para que o cotista passe pelo "ônus" de ter a autodeclaração analisada -inclusive pela comissão.

"A lei não precisa predeterminar, para cada fraude que haja, qual a natureza [das medidas a seguir]", diz.

VERIFICAÇÃO

A verificação do fenótipo por banca é controversa.

A lei federal 12.990 (2014), que reserva 20% das vagas a negros em concursos públicos, determina que o critério é autodeclaração como preto ou pardo, conforme o quesito de cor ou raça do IBGE.

Uma norma, fixada pelo Ministério do Planejamento no início deste mês, contudo, estabelece a criação de comissões, em cada órgão, para verificar a autodeclaração. Os critérios devem considerar só a aparência do candidato.

Para o geneticista Sergio Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, os critérios físicos usados em bancas para verificar a autodeclaração "não são válidos sob o ponto de vista científico".

"A classificação como pardo é subjetiva e depende de fatores ambientais, como luz do sol e posição geográfica -em termos de ancestralidade biogeográfica, os pardos do norte do Brasil diferem consideravelmente dos pardos do sul", diz Pena. "Qualquer lei que se baseie nela [classificação] vai ser falha."

O IBGE não determina que características tornam alguém pardo ou preto. "Apresentamos o sistema de classificação, os órgãos é que vão discutir quem é negro", diz o analista do IBGE Jefferson Mariano.

O coordenador do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, José Jorge de Carvalho, defende que haja comissões em que a autodeclaração seja "confrontada", apesar de reconhecer que nem com elas se consiga "100% de verdade".

"O racismo é pela aparência, o que inclui cor da pele, mas o cabelo também. Às vezes até o nariz e os lábios são elementos. Isso tem que ser avaliado de forma integral."

O concurso de 2015 foi o primeiro de admissão à carreira de diplomata com cotas para negros. Como cotista, o capixaba bacharel em ciência política concorreu tanto entre os que se inscreveram para as seis vagas de cotas para negros como entre os que disputavam as 22 vagas da chamada ampla concorrência.

Na primeira fase, Siqueira foi beneficiado pelas cotas, pois não conseguira a pontuação para a ampla concorrência. Na fase final, porém, ele obteve pontuação para se classificar entre os não cotistas -e foi aprovado nesse grupo. A concorrência entre cotistas era de 111,8 por vaga, e, entre os não cotistas, 239,6 por vaga.


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