Folha de S. Paulo


Sandinismo virou regressão, diz opositor Carlos Chamorro

Dos quatro filhos de Pedro Joaquín e Violeta Chamorro, Carlos Fernando era o que menos se interessava pelo jornalismo, apesar de o pai ter sido o "publisher" do "La Prensa", principal jornal da Nicarágua.

Adolescente, Carlos foi estudar economia no Canadá. Mas, ao retornar a seu país, em 1977, encontrou-o imerso num clima de alta tensão política.

Martin Do Nascimento/Knight Center/Divulgação
O jornalista Carlos Chamorro, durante palestra na Universidade do Texas-Austin, em abril de 2014
O jornalista Carlos Chamorro, durante palestra na Universidade do Texas-Austin, em abril de 2014

Na época, vários setores da sociedade: a classe média, parte do empresariado e da Igreja e grupos de guerrilha urbana estavam engajados na tentativa de retirar do poder a poderosa família Somoza, uma verdadeira dinastia que dominou a vida política do país com mão-de-ferro por mais de 40 anos, perseguindo a oposição e calando a imprensa.

O jornal de seu pai estava nessa luta, fazendo uma vigorosa oposição a esse regime dinástico e, por conta disso, sofrendo ameaças. O jovem Carlos aproximou-se da guerrilha e chegou a realizar treinamentos.

À frente desses grupos de distintas vertentes estavam os sandinistas, um movimento de esquerda cuja inspiração era o revolucionário Augusto Cesar Sandino (1895-1934), célebre por liderar uma resistência aos EUA nos anos 20 e 30.

"Minha vida mudou radicalmente quando assassinaram meu pai. Entrei no jornalismo por um imperativo político. Era preciso acabar com a ditadura de Somoza. E meu lugar natural de luta passou a ser o jornal que meu pai tinha comandado", disse Carlos em entrevista à Folha, por Skype.

O assassinato de Pedro Joaquín Chamorro no dia 10 de janeiro de 1978 foi um dos aceleradores da Revolução Nicaraguense, pois chocou o país, levando multidões às ruas de Manágua.

No ano seguinte, por fim, o levante saiu vitorioso, derrubando os Somoza e deixando adiante do país a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional).

DESILUSÃO

"Na minha família o apoio ao sandinismo teve distintos momentos. Minha mãe e meus irmãos o apoiaram no começo, mas logo se desiludiram e se afastaram", conta Carlos, 60.

Violeta, então, passou a conduzir o "La Prensa", transformado-o novamente num jornal de oposição à nova gestão, enquanto Carlos, ainda identificado com a causa sandinista, foi trabalhar no "Barricada", um jornal abertamente governista.

No começo do período pós-revolucionário, o poder foi exercido por uma junta que abrigava distintos setores da sociedade, com a FSLN à frente. Porém, após vencer as eleições de 1984, o líder sandinista Daniel Ortega passou a afastar as forças mais conservadoras e a centralizar o poder.

Nas eleições de 1990, os sandinistas pagaram o preço do isolamento, sendo vencidos por uma ex-aliada, justamente Violeta Chamorro, viúva de Pedro Joaquín e mãe de Carlos.

"Foi um período em que se tentou construir um país com instituições livres, como a Justiça, a corte eleitoral e o parlamento. Economicamente, caminhamos para uma economia de mercado", conta Carlos.

Apesar de hoje fazer comentários elogiosos ao governo da mãe, na época não foi essa sua posição. Carlos continuou no "Barricada", que então passou a ser um jornal de oposição.

Enquanto em casa, segundo ele, a família tinha boa convivência, na atuação política os Chamorro estavam de lados opostos.

Violeta governou de 1990 até 1997 [hoje, aos 86, está afastada da vida pública], foi sucedida por dois governos conservadores até que, em 2006, o mesmo Daniel Ortega venceu as eleições e retornou ao poder, de onde não saiu mais.

OUTRO SANDINISMO

"A América Latina tem em seu imaginário o sandinismo como um movimento libertário, de esquerda, mas é preciso saber que hoje isso virou outra coisa. Voltamos a ter um alto grau de concentração de poder numa família, com uma base de apoio construída sobre políticas assistencialistas e uma economia neoliberal. Nossas instituições estão destruídas, não há pesos e contrapesos. Também regredimos em direitos civis, é um governo contra o aborto, contra a aceitação de refugiados", afirma Carlos ao comentar a razão do retorno da Nicarágua aos noticiários.

Nos últimos meses, Ortega tomou várias medidas autoritárias. Tendo aprovado a reeleição indefinida, apresentou-se como candidato para um quarto mandato no próximo dia 6 de novembro, tendo a mulher, Rosario Murillo, como vice. Impediu a presença de observadores estrangeiros e retirou o registro legal do único partido de oposição, o PLI (Partido Liberal Independente), além de destituir os únicos 16 deputados opositores do atual Congresso, composto por 91 membros.

"É um gesto simbólico, porque a oposição já estava liquidada. Esses deputados já não podiam aprovar nada. Trata-se de uma sinalização de que Ortega pretende governar, no próximo mandato, com um parlamento totalmente a favor", diz Carlos.

Onde fica Nicarágua

Hoje à frente do jornal "El Confidencial" e com dois programas de televisão em um canal independente, o herdeiro dos Chamorro já não crê no jornalismo partidário que praticou no passado.

"Naquela época fazia sentido pelo contexto. Desde os anos 90, acredito no jornalismo profissional e autônomo, porque os tempos são outros."

Para ele, virão anos difíceis. Tendo entrevistado Ortega várias vezes, disse ter ouvido dele repetidamente que não acredita "no sistema democrático, e sim na democracia direta", o que, em sua concepção, seria uma relação carismática construída com o povo por fora do sistema eleitoral.

"A médio prazo não vejo uma reação possível, uma aliança de forças como houve na época da Revolução. Eu preferia que a mudança viesse de uma forma pacífica, a partir do convencimento da população de não apoiar mais esse regime que quer perpetuar-se no poder, mas por ora não vejo possibilidade de mudança que não seja com algum tipo de trauma. Estão se fechando todas as portas", afirma.


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