Folha de S. Paulo


Na Nicarágua não há mais oposição, só o partido de Ortega, afirma ex-aliado

Arnulfo Franco/AP Photo
ORG XMIT: PAN103 Sergio Ramirez, writer and former Nicaragua's Vice President, talks during an interview with The Associated Press in Panama City, Monday, May 9, 2011. Ramirez is in Panama to launch his new book 'La Fugitiva'. (AP Photo/Arnulfo Franco)
O escritor Sergio Ramírez, ex-presidente da Nicarágua, em entrevista para Associated Press em 2011

"Aqui temos um socialismo em que a pobreza não diminui, mas o número de milionários aumenta", diz à Folha, com certa ironia melancólica, o escritor e ex-vice-presidente da Nicarágua, Sergio Ramírez, 73.

Para o principal intelectual do país, a expulsão de 16 deputados de oposição do Congresso na última sexta (29) foi mais uma manobra do presidente Daniel Ortega, 70, para eliminar a oposição e tornar-se um autocrata, a poucos meses das eleições presidenciais e legislativas marcadas para 6 de novembro.

"Ortega acredita na ideia de governo de partido único, já disse isso mais de uma vez", explica. Ramírez fez parte do grupo de intelectuais que apoiou a Frente Sandinista de Liberação Nacional contra a ditadura da dinastia Somoza. Nos anos 1980, chegou a ocupar o cargo de vice-presidente do próprio Daniel Ortega.

Porém, logo desentendeu-se com o ex-chefe e outros ex-guerrilheiros sandinistas e formou uma força dissidente, o MRS (Movimento de Renovação Sandinista).

Hoje, dedica-se praticamente só à literatura: é autor de mais de 20 romances, dá aulas nos EUA e escreve regularmente para o jornal espanhol "El País". Ramírez é profundamente crítico à atual radicalização do regime orteguista.

Leia, abaixo, a entrevista que concedeu à Folha.

*

Alfredo Zuniga/AFP Photo
Nicaraguan President Daniel Ortega addresses supporters during the celebration of the 37th anniversary of the Sandinista Revolution at La Fe square in Managua on July 19, 2016. / AFP PHOTO / ALFREDO ZUNIGA ORG XMIT: RAA1173
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, durante celebração do 37º aniversário da revolução sandinista

Folha - A retirada dos mandatos dos 16 deputados de oposição ocorreu segundo regras democráticas ou houve abuso de poder por parte do Tribunal Constitucional, por pressão do governo nacional?

Ramírez - Os deputados expulsos haviam ganhado seus postos de forma legítima por meio do voto, nas eleições passadas, e o tribunal, nas mãos de Ortega, acaba de retirar seus mandatos de forma arbitrária.

Essa medida dá seguimento a uma decisão da Corte Suprema, também nas mãos de Ortega, que antes havia retirado o registro jurídico da coalizão de partidos a que pertenciam esses deputados. O que está sendo dito é: "Aqui não haverá mais do que um partido, apenas o de Ortega".

Ou seja, o episódio encerra a possibilidade de que exista uma oposição nas eleições de 6 de novembro?

A oposição real e legítima foi eliminada. Foram inscritos para as eleições 19 partidos, mas são de fachada, como os que existiam nos países da Europa Oriental nos tempos soviéticos.

Na Nicarágua, chamamos esses partidos de "zancudos" (mosquitos), porque só buscam chupar o sangue do orçamento do país, uma vez que ganham benefícios para prestar-se ao trabalho de atuar como uma falsa oposição.

O sr. está de acordo com a reeleição indefinida?

Uma reeleição é democrática em um regime democrático, mas a reeleição indefinida nunca é democrática. Daniel Ortega foi o único candidato de seu partido desde 1984, ou seja, há mais de 30 anos. E, com esse novo período que vai ganhar, terá estado na Presidência por 25 anos. E não pense que, em 2021, dentro de cinco anos, ele não vá se apresentar novamente como candidato.

Por que Ortega não quer observadores internacionais? O presidente não mede o impacto negativo frente a instituições e países estrangeiros?

Ele não quer observadores porque não quer eleições. E não quer eleições porque não crê na democracia representativa. Ortega crê no partido único, como já disse publicamente mais de uma vez. De modo que, para ele, as eleições são um mal necessário, por isso trata de rebaixar sua relevância.

Ele deseja algo que seja mais parecido com as velhas eleições da Europa Oriental, onde os candidatos governistas tinham mais de 90% dos votos.

Onde fica Nicarágua

Muitos dos que apoiaram o movimento sandinista no passado estão desiludidos com Ortega. Há um risco de que o legado do ideal e da luta sandinista se percam?

Esse legado já se perdeu. A única coisa que existe é o ruído da propaganda, com palavras e imagens revolucionárias falsas e vazias, que só servem para fazer uma propaganda que o garanta no poder. O que está ocorrendo agora na Nicarágua me lembra muito o que ocorreu com o PRI mexicano [partido nascido pós-Revolução Mexicana, em 1910, e que seguiu usando o glossário revolucionário para manter o apoio da militância por décadas].

Muitos movimentos de esquerda da América Latina tiveram o sandinismo como modelo. Como fica essa herança?

Também está perdida. Há uma esquerda oficial, a mesma que se agrupa ao redor do chavismo e do Foro de São Paulo, que não questiona Ortega nem sua autocracia. Se você vai e diz a esses ortodoxos que o regime de Ortega é de direita, te dizem que você é um agente do imperialismo.

Mas entre os milhares que vieram à Nicarágua para trabalhar pela revolução quando eram jovens, você vê apenas o desencanto. Essa foi a última revolução que viram em suas vidas, e ela foi completamente desviada.

Ainda neste ambiente de tensão política, a Nicarágua vive um bom momento econômico na América Central. É o que explica os altos índices de popularidade (entre 60% e 70%) de Ortega? Ou isso se dá por que, de fato, as pessoas ainda veem nele um líder confiável e eficiente?

É preciso relativizar as pesquisas. Uma do instituto Borge y Asociados, os únicos que acertaram quando os sandinistas perderam as eleições de 1990, mostram Ortega com 40% de apoio. Ainda assim é um índice alto, mas longe da unanimidade que ele pretende.

Sua gestão repartiu presentes entre os mais pobres graças ao dinheiro do petróleo venezuelano, só que este já se esgotou. Entretanto, o número de pobres não diminuiu. Hoje, mais de 40% da população vive com menos de dois dólares por dia, e 70% depende de algum trabalho informal.

Segundo a revista "Forbes", a Nicarágua é o país centro-americano onde o número de milionários mais cresceu. Ou seja, é um socialismo raro este, onde o número de pobres não diminui e aumenta o número de milionários.

Qual será a alternativa da oposição real nas próximas eleições?

A oposição verdadeira está ilegalizada, não poderá participar. Creio que pedirá que as pessoas não votem. De minha parte, farei isso. Não vejo em quem votar, portanto não votarei.


Endereço da página:

Links no texto: