Folha de S. Paulo


Líbia vira rota mais letal para refugiados e imigrantes da África

Andre Liohn/Folhapress
Imigrantes ilegais descansam em uma das salas do centro de detenção de Karareem, na Líbia
Imigrantes ilegais descansam em uma das salas do centro de detenção de Karareem, na Líbia

O médico legista líbio Ali Abuseid recolheu mais de 60 cadáveres nas praias da Líbia nos últimos dois anos. Eram todos refugiados que morreram afogados tentando chegar de barco à Itália.

Os corpos chegam inchados e pesados depois de passarem tantas horas no mar. Por isso, são necessárias duas pessoas para pôr o corpo numa maca e depois rolá-lo para o saco mortuário.

Não se pode puxar o cadáver pelas mãos, porque a pele sai como se fosse uma luva, explica o médico.

"Os refugiados perdem tudo: suas famílias, o dinheiro que pagam para o traficante levá-los à Europa, o sonho de morar num país rico. Eu tento garantir que pelo menos seus corpos estejam em bom estado para serem enterrados", diz Abuseid, 32.

É quase impossível registrar as impressões digitais, porque os corpos já chegam em decomposição. Então o médico arranca um dente do siso ou serra um pedaço de 5 cm do fêmur para poder fazer um exame de DNA.

As amostras são guardadas num freezer. Provavelmente nunca serão usadas, porque um exame de DNA custa centenas de dólares e a Líbia não tem dinheiro. Nem governo.

A Líbia se tornou o principal centro de tráfico de refugiados no mundo. E a rota mais letal para os migrantes que querem chegar à Europa.

Só neste ano, 3.034 refugiados morreram tentando chegar de barco até a Europa. A esmagadora maioria —2.606 (85%)— saiu da Líbia.

Após a derrubada do ditador Muammar Gaddafi, em 2011, o país viveu uma breve paz e mergulhou no caos. Hoje, tem três governos, guerra civil, fronteiras sem fiscalização e impunidade para os traficantes de pessoas.

Para completar, a Líbia está cercada por nações da África subsaariana com massas de jovens subempregados, ávidos pela oportunidade de emigrar para a Europa.

Em 2015, a Turquia foi o principal porto de saída dos refugiados rumo à Europa. Mas, em março, a UE fechou um acordo com o país, e o fluxo de sírios, iraquianos e afegãos à Grécia praticamente estancou. A média de 2.248 pessoas chegando por dia em janeiro caiu para 60 em julho.

Já na rota da Líbia para a Itália, o fluxo explodiu: a média de 176 migrantes chegando por dia em janeiro subiu para 698, alta de quase 400%. A maioria vem da Nigéria, Níger, Gana, Sudão e Eritreia.

BICOS

Atualmente, há cerca de 1 milhão de imigrantes ilegais na Líbia, juntando dinheiro para enviar a suas famílias ou pagar entre US$ 1.000 e US$ 2.000 a um atravessador e pegar o barco para a Itália.

É muito fácil encontrá-los: são dezenas de jovens que se aglomeram nas rotatórias, esperando que os contratem para um dia de trabalho. Cada um leva seu instrumento para identificar o serviço que oferece —demolidores com martelos, pintores com rolos.

Andre Liohn/Folhapress
O nigeriano Andrew, 25, chegou à Líbia para tentar chegar à Europa e faz bicos para juntar US$ 2.000
O nigeriano Andrew, 25, chegou à Líbia para tentar chegar à Europa e faz bicos para juntar US$ 2.000

Eric Andrews é gesseiro. Pagou US$ 800 (R$ 2.592) para vir de Gana à Líbia em janeiro. Isto é, ainda está pagando. Achou que ia conseguir juntar dinheiro rápido, mas o movimento está fraco.

Paga 150 dinares líbios (R$ 120) de aluguel para dividir um quarto com outros seis imigrantes. Sua única diversão é jogar damas e assistir a jogos de futebol na TV.

Tem 25 anos, mas parece ter 40. "Problemas financeiros envelhecem a gente. Aqui é muito ruim, mas não tenho dinheiro para voltar para casa."

Ele ganha entre US$ 5 e US$ 10 por dia. Andrews pode se considerar um homem de sorte. Muitos migrantes acabam presos em um dos 30 campos de detenção da Líbia.

No centro de detenção Abu Sleem, havia dois banheiros para cem pessoas. O de Al Karareem estava sem receber limpeza havia um mês. "Às vezes o cheiro é insuportável", dizia um funcionário.

Grávida de cinco meses, a nigeriana Blessing Tony, 28, foi presa há 20 dias e ainda não conseguiu avisar seu marido. "Confiscaram nossos celulares e não nos deixam telefonar", disse a nigeriana, que fugiu de Borno, Estado devastado pelo Boko Haram.

Blessing e outros detentos em Karareem contaram que falta comida e que são espancados frequentemente. Ahmed Muftah, um dos guardas, rebate as críticas: "Fiquei preso na época do Gaddafi —pode ter certeza, isso aqui é um hotel cinco estrelas."

UNIÃO EUROPEIA

A UE pressiona a Líbia para aumentar a vigilância e impedir os refugiados de cruzarem o Mediterrâneo. A Operação Sophia, além de resgatar imigrantes, passou a treinar a guarda costeira líbia para intensificar apreensões.

Vai ser difícil.

A guarda costeira tem seis botes de borracha e dois barcos de alumínio para patrulhar os 660 km de costa. Os dois barcos são usados na guerra contra a facção terrorista Estado Islâmico.

Andre Liohn/Folhapress
Reda Issa, comandante da Guarda Costeira líbia, reclama da falta de apoio financeiro da Europa
Reda Issa, comandante da Guarda Costeira líbia, reclama da falta de apoio financeiro da Europa

"Os europeus estão obcecados com os migrantes, querem que nós os impeçamos de cruzar, mas temos só seis barcos, e nossa prioridade é contrabando de armas e petróleo", diz Reda Issa, comandante da Guarda Costeira.

"A UE deveria nos dar recursos e equipamentos. A Turquia receberá € 6 bilhões (R$ 21,7 bilhões) para lidar com os refugiados, e nós? Nem um centavo. Dizem que a gente vai usar na guerra, que a Líbia não é segura, então não nos ajudam."


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