Folha de S. Paulo


Reino Unido depende de mão de obra imigrante e deve sofrer com Brexit

Você já percebeu que falta salada de frutas nos supermercados nos dias ensolarados, quando todo mundo decide fazer piquenique? Não? É porque raramente acontece.

Eu nunca pensei realmente no mecanismo que há por trás disso, até que entrevistei um homem que fornecia trabalhadores temporários para uma empresa britânica que fazia saladas em sacos e frutas em potes.

Andrew Yates - 23.mai.2016/Reuters
Trabalhadores imigrantes separam cenouras em usina de beneficiamento em Goose, no leste inglês
Trabalhadores imigrantes separam cenouras em usina de beneficiamento em Goose, no leste inglês

A demanda flutua de acordo com o clima, mas o clima britânico é notoriamente mutável, e os produtos frescos têm uma curta vida de prateleira.

Portanto, a empresa só finalizava seu pedido do número de trabalhadores temporários necessários para o turno da noite às 16h do mesmo dia. Os trabalhadores à espera recebiam mensagens de texto: "você trabalha à noite" ou "você está livre".

A maior parte dessa força de trabalho hiperflexível tinha vindo da Europa para o Reino Unido. "Nós não comeríamos sem os europeus do leste", disse o homem da agência de trabalho temporário, confiante.

Ele tem razão? O Reino Unido pode estar prestes a descobrir. Agora que os cidadãos britânicos votaram por pequena margem na saída da UE, a política de imigração do país está incerta.

Alguns querem que o Reino Unido mantenha o livre movimento da força de trabalho em troca de acesso ao mercado único europeu.

Mas os principais candidatos a substituir David Cameron como primeiro-ministro disseram que qualquer acordo para deixar a UE deve envolver o controle da futura migração, já que esta foi a promessa feita aos eleitores do Sair antes do referendo.

Fala-se que o país adotará um sistema de pontos semelhante ao da Austrália, que permitiria a entrada de migrantes de alta qualificação como engenheiros, mas impediria os de baixos salários como os empacotadores de salada.

Se essa é a política que está sobre a mesa, é hora de os políticos, os empregadores e o público pensarem seriamente em como isso afetaria a economia.

Os nativos da UE representam 31% dos trabalhadores na manufatura de alimentos, 21% em hotéis e outras acomodações, 16% na agricultura e 15% nos armazéns.

Os migrantes atuais provavelmente não serão mandados para casa, mas as pessoas que querem limitar a migração de baixa renda dizem que isso resultaria em mais empregos para os britânicos no futuro.

Mas já há muitos empregos para os britânicos. A porcentagem de britânicos trabalhando é quase um recorde: 74,4%, maior que em 2004, quando os países do Leste Europeu ("A8") aderiram à UE, quando a migração para o Reino Unido começou a aumentar acentuadamente.

Torsten Bell, diretor do grupo de pensadores Resolution Foundation, disse que o único bolsão de desemprego importante que resta no Reino Unido é entre pessoas deficientes. "E não vamos mandá-las para os campos."

Há também algo na natureza desses empregos que os torna duros para os britânicos. Esses setores geralmente exigem extrema flexibilidade do pessoal: os embaladores de saladas que esperam uma mensagem de texto dizendo que terão trabalho naquela noite; os faxineiros que fazem turnos ao anoitecer e amanhecer; os catadores de frutas que vivem em trailers nas fazendas.

Quando as pessoas dizem "os migrantes estão fazendo os serviços que os britânicos têm preguiça de fazer", não estão vendo o ponto principal.

Esses empregos podem ser agradáveis se você for uma pessoa solteira que veio ao Reino Unido para ganhar dinheiro como trampolim para um futuro melhor.

Mas se você vive aqui de forma permanente, tem filhos aqui, reivindica benefícios aqui, não são empregos nos quais se pode facilmente construir uma vida.

Os agricultores dizem que um motivo pelo qual não conseguem atrair trabalhadores britânicos é o sistema de benefícios incômodo: não faz sentido trabalhar por períodos curtos e baixos salários e mais tarde ter o pagamento de seus benefícios atrapalhados durante semanas.

Então os empregadores que forem privados do acesso a trabalhadores europeus flexíveis enfrentariam uma opção. Eles podem automatizar parte do trabalho, mas isso seria difícil em setores como limpeza.

Poderiam parar de se expandir por achar que não conseguiriam trabalhadores para uma nova fábrica de carne, por exemplo, ou uma nova fazenda de frutas. Ou poderiam reformular os empregos para atrair os trabalhadores britânicos: mais estáveis, menos precários, mais bem pagos.

Alguns trabalhadores migrantes já fazem pressão por essas coisas. O Reino Unido como país poderia ter usado a regulamentação para ajudá-los. Mas até agora parecemos ter aceitado esses empregos como são em troca dos bens e serviços baratos e convenientes que dependem deles.

Os migrantes com baixa remuneração são visíveis, mas muitos benefícios que eles trazem são invisíveis: os morangos britânicos nas lojas, aquela salada na prateleira na hora em que você quer, o escritório que está sujo quando você sai à noite, mas limpo quando você volta. Talvez nós só percebamos realmente o que temos quando o perdermos.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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