Folha de S. Paulo


Medo de sequestro é pior que estar na guerra, diz correspondente em Caracas

Ivan Alvarado/Reuters
Bullet holes are seen after a gunfight outside a MERCAL, a state-run supermarket in a slum in Caracas, Venezuela June 13, 2016. REUTERS/Ivan Alvarado ORG XMIT: IA201
Criança espia por buraco de bala em parede de supermercado estatal na periferia de Caracas

Já ouvi zumbido de mísseis passando do meu lado enquanto tentava me abrigar da artilharia de Muammar Gaddafi no deserto líbio. Corri até perder o fôlego para escapar de uma turba que caçava jornalistas durante a revolução egípcia. Na Síria, meu quarto de hotel sacudiu feito terremoto com a explosão de um carro-bomba na redondeza.

Mas nada se compara ao pânico que sinto por dormir e acordar todos os dias em Caracas, a cidade mais violenta do mundo fora das zonas de guerra. A capital venezuelana é um universo surreal, onde um clima delicioso e cantos de pássaros contrastam com uma psicose de dar nó na garganta.

Meu maior pavor é ser sequestrado. Moro numa área de classe média alta com alto índice de ocorrências. Todo mundo é visado –empresários, estudantes, trabalhadores. Estrangeiros, incluindo diplomatas, são alvo prioritário por possuírem dólares.

Para acelerar resgates, bandidos costumam torturar reféns. Cansei de ouvir relatos de famílias que desembolsaram fortunas e só recuperaram um corpo mutilado.

No ano passado, entrevistei um sequestrador que, semanas antes de me receber, havia descarregado a pistola num refém para calar seus gritos de pavor.

Dia desses, li um estudo que mapeou os sequestros em Caracas. Folguei em saber que o horário de pico é ao amanhecer, de domingo a quarta-feira.

O ar pesa com tanta história relacionada a esse tema. Um amigo taxista escolheu como padrinho de sua filha um vizinho sequestrador. Meu personal de academia foi levado por bandidos duas vezes –no mesmo mês. Ele diz ter certeza de que o mandante é um ex-sócio.

Quem quiser ter um gostinho da coisa pode buscar "secuestro Caracas" no YouTube. Quis rever alguns vídeos para escrever este texto, mas me deu náusea e logo parei.

É deprimente a sensação de impotência, já que boa parte dos sequestros tem cumplicidade de quem deveria, em tese, proteger a população. O sequestrador que entrevistei me disse que seu negócio funciona, em grande parte, graças à ajuda de policiais, que atuam inclusive como informantes. Agentes de uniforme passam ocasionalmente em sua casa para tomar cerveja.

O informante também pode ser quem você menos espera. Daí o medo constante do garçom, da diarista, do caixa de banco, do empacotador de supermercado, da moça da lavanderia etc. Nunca confiar em ninguém.

NA RUA

Na rua, ando sempre ligado no som das motos. Baixa cilindrada chegando perto tem boas chances de ser assaltante. Motos de maior potência são geralmente usadas por guarda-costas de gente endinheirada.

O maior perigo para quem sai de casa são os chamados "coco seco", moleques do crime com capacidade de raciocínio tão primitiva que seus cérebros parecem ocos. É a turma mais propensa a apertar o gatilho. Nunca vi nenhum "coco seco" em Bagdá, Damasco ou Cabul.

Quando me desloco para reportagens, geralmente na garupa de mototáxis para driblar engarrafamentos, gelo a cada vez que o semáforo fecha. É a hora mais propícia para assaltos. Se percebo sujeitos numa moto ao lado me secando no trânsito parado, faço cara de paisagem ""e rezo. Acho que usar relógio de plástico e roupa velha me livrou de muito aperto.

Não entendo como tantos venezuelanos bem da vida ainda saem por aí embecados, perfumados e falando alto no iPhone 6, como se estivessem em Zurique.

Almoço quase todos os dias na varanda de um restaurante de onde vejo marcas de bala no prédio em frente, lembranças de um intenso tiroteio ocorrido anos antes. Também há uma marca de tiro cravada na porta do edifício onde moro.

O aeroporto de Caracas é zona de alto risco. Em março, um egípcio foi morto a tiros por assaltantes em plena tarde de sábado na porta do terminal nacional, em meio ao vaivém de gente. A cena também está no YouTube.

Um colega correspondente colombiano foi assaltado no trajeto de dez metros entre a porta do táxi e o portão do terminal internacional.

O medo explode quando abro exceção do meu enclausuramento noturno e saio para jantar com amigos ou coisa parecida. Andar de carro pelas ruas desertas e mal iluminadas de Caracas é uma experiência aterradora. Meu coração quase sai pela boca a cada vez que algum carro ou moto cruza o caminho.

Esse cenário deve piorar, em meio ao desespero de uma população assolada por escassez e inflação.

Um taxista com quem costumo andar dia desses me disse, meio sério, meio brincando: "Samy, você é meu amigo, mas se o meu filho estiver com fome e eu te enxergar na rua voltando do supermercado, não hesitarei em quebrar tua cara para pegar a comida."


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