Folha de S. Paulo


A alternativa existente à UE é terrível, avalia cineasta Ken Loach

"A Europa vive um momento perigoso. A decisão que teremos de tomar nesta semana pode ter consequências muito sérias", diz o cineasta britânico Ken Loach, 80, às vésperas do plebiscito que definirá se o Reino Unido permanecerá na União Europeia, na quinta-feira (23).

Em entrevista à Folha, por telefone, de Londres, Loach defendeu a permanência no bloco, apesar de considerá-lo um "projeto neoliberal", ao qual tem diversas críticas.

Para o cineasta, a "alternativa é muito mais terrível, pois levará a um mundo de nações pequenas isoladas, de mais intransigência, de mais racismo e de mais xenofobia".

Valery Hache/AFP
British director Ken Loach gestures during a photocall for the film
Diretor britânico Ken Loach, durante festival de Cannes, em 2014

Porém, afirma, a União Europeia precisa de um redesenho, no qual grupos e partidos de esquerda se unam e tenham papel mais ativo, "para que o bloco sirva não só para os negócios, mas também para proteger trabalhadores e diminuir os índices de desemprego e pobreza."

Loach acaba de vencer a Palma de Ouro em Cannes com o filme "Eu, Daniel Blake", que critica as atuais dificuldades que os trabalhadores britânicos enfrentam para terem acesso a benefícios.

Nas entrevistas durante o evento e na divulgação do filme, o diretor tem se referido à possibilidade da saída do Reino Unido do bloco como algo trágico e de "consequências cruéis" para os trabalhadores europeus em geral.

Esquerdista, Loach é conhecido por sua longa produção engajada em causas políticas e sociais. Seus roteiros discutem questões do Reino Unido e de outros países.

Em "Ventos da Liberdade" (2006), também vencedor da Palma de Ouro, abordou a guerra da Independência da Irlanda (1919-21) e a guerra civil irlandesa (1922-23) a partir da história de dois irmãos.

Em "Terra e Liberdade" (1995), o tema foi a resistência republicana durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) aos olhos de um voluntário inglês que luta contra os franquistas. E, em "Uma Canção para Carla" (1997), os conflitos na América Central nos anos 80, com a história de uma nicaraguense que se exila na Escócia e se envolve com um motorista de ônibus.

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Folha - O assassinato da deputada trabalhista Jo Cox, na última quinta-feira (16), pode impactar o resultado do plebiscito sobre a UE?

Ken Loach - Ainda não temos todos os elementos do que aconteceu. Mas, se for confirmado que o assassino tinha vínculos com grupos de extrema-direita, haverá uma reação, espero, de rejeição à hipótese de sairmos da União Europeia. Seu assassinato foi uma brutalidade tremenda.

O sr. tem dito em entrevistas que considera a UE um "projeto neoliberal". Por quê?

Porque é um programa voltado para viabilizar os grandes negócios, mais do que para pensar estratégias comuns de políticas sociais. É um programa direcionado para privatizações em geral, sem excluir setores fundamentais, como saúde e educação. E para desregular ainda mais o trabalho, deixando os mais pobres e os desempregados vulneráveis. Na atual União Europeia, tudo está à venda.

Vimos o que ocorreu com a Grécia [durante o auge da crise econômica e o ajuste fiscal imposto pela UE], a humilhação pela qual passou o povo grego, e esse é um exemplo dos efeitos negativos do que vem sendo a União Europeia dos últimos tempos.

A países menores, e com dificuldades econômicas, são impostas medidas de austeridade que prejudicam muito o cidadão comum, antes de que se ofereça a eles, de fato, alguma ajuda.

Ao estabelecer o livre mercado sem proteção aos trabalhadores, se faz um elogio à meritocracia sem dar assistência a quem não tem condições de participar de um ambiente muito competitivo.

Na verdade, eu não tenho muitas coisas boas para dizer sobre a União Europeia. Não vem sendo boa para nós nem para os europeus.

Ainda assim, o sr. defende que o Reino Unido, no plebiscito do próximo dia 23, permaneça na União Europeia. Por quê?

Porque a alternativa é muito pior. É uma alternativa que nos jogará mais à extrema-direita, que dará mais espaço ao racismo e à xenofobia, à intolerância com os imigrantes. Caminharemos para sermos países isolados tentando defender-nos uns dos outros e daqueles que vêm de fora.

O sr. acha que entre os que defendem a saída do Reino Unido da União Europeia estejam pessoas que usam os mesmos argumentos de Donald Trump na campanha americana?

Sim, há similaridades em termos dos problemas a que se dirigem —os da imigração e do racismo principalmente—, e paralelos entre as políticas nacionalistas que propõem. Mas há diferenças culturais importantes. Uma figura como Donald Trump jamais seria aceita pelos britânicos, pois é muito caricaturesca, um palhaço que aqui não teria o apelo que tem lá.

O sr. prefere que o Reino Unido permaneça na União Europeia, mas por razões distintas de conservadores como o premiê David Cameron?

Exatamente, sou um opositor das razões de Cameron, que também deseja a permanência. O que critico na UE é justamente o que os conservadores e liberais veem de positivo, o projeto neoliberal.

Se defendo a permanência, é porque creio que devemos enfrentar os problemas da Europa a partir de dentro, e não estando fora. Estando fora, os problemas serão mais graves e teremos menos instrumentos para atuar.

E quais são as alternativas dentro da Europa?

Há vários grupos e partidos que compartilham essa minha preocupação. Temos o Podemos, na Espanha, a parte mais à esquerda do Syriza, na Grécia. A esquerda precisa se encontrar nessa nova União Europeia e propor alternativas ao atual projeto neoliberal do bloco. Mas não podemos sair dele. Estou convencido disso.

Seu novo filme, "Eu, Daniel Blake", trata da dilapidação do Estado de bem-estar social no Reino Unido. Como o relaciona com a questão de fundo deste plebiscito?

A maior parte desse Estado de bem-estar social já sumiu. Era como um grande iceberg que está derretendo rapidamente. Entendo que o momento econômico seja outro, mas não há nada surgindo no lugar do que tínhamos para proteger as pessoas que dele precisam. As empresas privadas não farão isso. E é essa a questão levantada no filme.

Creio que se relaciona com o plebiscito porque essa situação vulnerável de trabalhadores e desempregados não é uma prioridade da UE como está desenhada hoje.

No filme, os protagonistas são um trabalhador doente e uma mãe solteira que enfrentam um calvário de burocracia e humilhação para serem atendidos. O sr. se preocupou em tratar de um tema específico do Reino Unido?

A pesquisa foi feita sobretudo em nossos centros de atendimento a desempregados e de saúde no Reino Unido, mas tenho certeza de ter falado da Europa de um modo geral. Esse sistema em que vivemos hoje praticamente culpa as pessoas pela sua situação de vulnerabilidade e pobreza e as humilha.

O sr. acompanhou o protesto da equipe do filme brasileiro "Aquarius", do diretor Kleber Mendonça Filho, em que o elenco se manifestou contra o processo de impeachment pelo qual está passando a presidente Dilma Rousseff?

Infelizmente eu ainda não havia chegado a Cannes neste dia. Senão, com certeza, teria me juntado a eles. Vi e fiquei admirado. Hoje existe muito mais pressão no mundo do cinema e da televisão para que não façamos mais protestos ou defendamos causas em eventos assim. Os espaços diminuíram, você pode passar a não ser bem visto se faz algo assim. Por isso creio que o que os brasileiros fizeram foi muito corajoso. Aplaudo o que essa equipe fez.

O sr. acha que o protesto prejudicou as chances de o filme receber algum prêmio?

Não. Eu me surpreenderia muito se isso ocorresse. Cannes tem hoje um júri muito independente e sério. Não creio que o protesto tenha algo que ver com o fato de o filme não ter sido premiado.


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