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Motivos de atirador para atacar boate gay em Orlando se confundem

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Omar Mateen, o atirador que matou 49 pessoas na boate gay Pulse, em Orlando, no domingo (12)
Omar Mateen, o atirador que matou 49 pessoas na boate gay Pulse, em Orlando, no domingo (12)

Muito antes de as vítimas de Omar Mateen serem totalmente identificadas, os prováveis candidatos à Presidência dos Estados Unidos estavam duelando sobre uma questão aparentemente limitada: o massacre foi um ato do "islamismo radical"?

Donald Trump e outros republicanos têm utilizado a expressão há tempos, em parte como uma maneira de sugerir que o presidente Barack Obama prioriza o politicamente correto em detrimento da manutenção da segurança dos norte-americanos.

Os democratas a evitaram, por medo de aumentar a islamofobia e legitimar as reivindicações dos terroristas, de representar uma religião. Na segunda-feira de manhã, Hillary Clinton rompeu com Obama, usando o termo pessoalmente para descrever Mateen, o segurança da Flórida que perpetrou o assassinato em massa.

Esse debate sobre a terminologia pode parecer uma distração, mas também se relaciona com a mais difícil e controversa de todas as questões: quando um jovem problemático mata dezenas de pessoas, invocando um grupo com o qual ele parece ter poucas ligações reais, como classificamos e, assim, damos um sentido ao que ele fez?

Orlando, como em ataques anteriores, deu início a uma busca obsessiva por pistas que podem nos permitir situar essa violência dentro de um contexto familiar. Trump, ao citar o "islamismo radical", estimula uma narrativa de confronto de civilizações e de guerra contra o terror.

Obama, por sua vez, vem concentrando sua indignação no que ele vê como a frouxidão das leis dos Estados Unidos em relação a armas. E grupos de direitos gays colocaram o ataque dentro do contexto de uma longa história de violência homofóbica.

A questão da motivação de Mateen tem ramificações que vão muito além de Orlando. Aqueles que buscam um controle de armas mais rigoroso têm um incentivo para enfatizar sua história de violência doméstica, suas declarações ameaçadoras, seus problemas emocionais e o contato com o FBI.

Quem deseja uma resposta mais forte dos EUA ao terrorismo islâmico se vê motivado a enxergar evidências dos seus laços com o Estado Islâmico, os extremistas que ele citou em uma ligação para a polícia quando o ataque estava em curso.

E para os defensores dos direitos dos homossexuais que anseiam que a dimensão da perseguição que sofrem seja reconhecida, a escolha, por parte de Mateen, de um clube gay durante o mês do orgulho gay é primordial.

CONFUSÃO

Mas, à medida que novos detalhes da vida de Mateen aparecem —incluindo relatos de que visitou a casa noturna, Pulse, e usou um aplicativo de encontros gay—, eles confundem mais do que esclarecem essas narrativas conflitantes. A questão de por que esse ataque aconteceu, e a pergunta subjacente sobre o que fazer sobre isso, só se tornaram mais difíceis de responder.

A discussão dessas pistas indiscriminadas e contraditórias para as motivações de Mateen se tornou uma procuração para um debate sobre qual narrativa é mais verdadeira e mais urgente.

À medida que as redes sociais e os programas de notícias a cabo nos Estados Unidos inevitavelmente se dividem em linhas partidárias, já ampliadas pela campanha presidencial, essas narrativas são cada vez mais consideradas exclusivas, ao invés de complementares.

Os esforços para adivinhar uma motivação revelam algo mais profundo do que a política: um desejo de encontrar sentido em uma violência aparentemente sem sentido.

Oferecer uma explicação —seja que isso se trate de islamismo radical ou doença mental ou homofobia ou acesso a armas— é também uma forma de tentar nos confortar com a garantia de uma falsa clareza em relação a algo que é, em última análise, desconhecido: a cadeia de experiências pessoais e decisões que levaram esse homem a assassinar 49 pessoas em Orlando.

Editoria de arte/Folhapress

"Há um forte impulso, particularmente nos Estados Unidos, para 'fazer algo' depois de uma tragédia como essa", disse Will McCants, especialista em terrorismo do Instituto Brookings, em Washington. "Se soubermos por que a tragédia aconteceu, vamos saber o que fazer."

Na verdade, segundo McCants, os ataques terroristas têm "uma confluência de causas e, porque estamos lidando com a mente humana e com a interação de fatores sociais e políticos complexos, é difícil separar o essencial do superficial".

Essa incerteza é particularmente aguda com a estratégia do Estado Islâmico de inspirar ataques de lobos solitários, através de uma propaganda que incentiva apoiadores ao redor do mundo a agirem por conta própria.

Essa descentralização deu ao grupo um alcance aparentemente global, mas coloca a tomada de decisões nas mãos de indivíduos que se identificam com isso por suas próprias razões, e que têm seus próprios planos.

Isso tornou difusa a distinção entre a motivação do grupo e do indivíduo, entre a violência que é estratégica ou que não faz sentido, entre os ataques terroristas enraizados em ideologia ou outros assassinatos em massa que refletem insatisfações mais pessoais.

"As razões dos lobos solitários são difíceis de estabelecer", disse McCants. "Por definição, eles não são parte de uma organização, então seus motivos para atacar tendem a ser mais idiossincráticos."

PADRÃO

O santo graal dos estudos sobre terrorismo tem sido, por anos, identificar um modelo padrão ou um roteiro de por que os indivíduos atacam. Mas, de forma repetitiva, todas as tentativas acadêmicas falharam. Trata-se de uma decisão profundamente pessoal que as pessoas tomam por razões que são quase inteiramente individuais, e que até mesmo podem ou não podem ser políticas.

"Como os indivíduos chegam a esse ponto é algo realmente complexo, e se tentarmos reduzir isso a um fator, vamos perder muito dessa complexidade", disse Paul Gill, professor da University College London, que estuda o terrorismo. "E é nessa complexidade que vamos entender de verdade o que aconteceu."

Isso revela uma verdade difícil. Fatores externos, como ideologia e acesso às armas, embora importantes, não podem explicar totalmente por que alguém decide atacar. Mesmo que todos os detalhes da vida de Mateen fossem finalmente revelados, ainda assim isso não responderia totalmente essa questão mais crucial.

A narrativa do "islamismo radical", entre todas as disponíveis, oferece talvez o apelo mais claro. Retrata atacantes e potenciais atacantes como um monólito, identificável por características comuns que são estranhas à maioria não-muçulmana dos Estados Unidos. E enquadra o terrorismo dentro do contexto familiar de uma guerra —algo que pode ser vencido.

A ênfase de Obama no acesso a armas letais, no entanto, apresenta o terrorismo como uma extensão do crime e, portanto, como algo que só pode ser administrado. Ainda assim, essa abordagem oferece seus próprios vilões —políticos e lobistas que se opõem a regulamentações mais rígidas sobre armas—, bem como uma maneira simples para pensar sobre a ameaça e como restringi-la.

O que todas essas narrativas tendem a minimizar ou negar é o grau em que o terrorismo é realizado por pessoas, individualmente, que tomam decisões individuais.

Os líderes políticos não querem reconhecer isso, já que isso requer admitir que a violência nunca é totalmente evitável. O Estado Islâmico também não pode reconhecer que seus "soldados" podem ser às vezes pouco mais do que indivíduos perturbados em busca de uma justificativa.

E as vítimas —que poderíamos dizer que incluem todos os cidadãos de qualquer país alvo de um ataque— não querem que seu trauma seja despojado de um significado.

Pode ser que seja isso o que é tão perturbador em relação ao desconhecimento supremo sobre as motivações de Mateen: não só que haverá inevitavelmente outro ataque em outro alvo fácil em outra cidade desprevenida, mas também que a sua causa pode e vai ser imaginada, mas nunca entendida de fato.

Tradução de DENISE MOTA


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