Folha de S. Paulo


Chacina antigays há 43 anos em Nova Orleans foi praticamente esquecida

As igrejas se recusaram a sepultar os restos mortais das vítimas. A morte da maioria dessas vítimas foi ignorada ou às vezes ironizada por políticos e a mídia. Ninguém foi indiciado pelo crime. O incidente deu lugar a uma piada que se disseminou por locais de trabalho e foi repetida na rádio.

O massacre em Orlando foi seguido por manifestações de pesar de políticos e cidadãos comuns, mas, para quem se lembra do incêndio no bar UpStairs Lounge, de Nova Orleans, essa recordação solitária se projetou com força sobre as discussões a respeito da carnificina desta semana na boate Pulse.

Mike Moreau, 72, perdeu vários amigos no incêndio no UpStairs Lounge. O que chama sua atenção são todas as diferenças entre o que aconteceu então e o caso mais recente, mas também a familiaridade da dor surda provocada pela tragédia.

"O que aconteceu conosco teve que ser mantido no âmbito particular", falou Moreau. "O público não queria saber sobre isso. Se as pessoas ouviam falar do assunto, reagiam com indiferença: 'Graças a Deus que eles morreram, eles mereciam'."

"Ver todas as manifestações de amor e apoio que essas pobres famílias estão recebendo é fantástico", ele disse, aludindo ao massacre em Orlando. "Elas estão sofrendo do mesmo jeito que nós sofremos, mas pelo menos sabem que o mundo entende sua dor e as apoia."

INCÊNDIO

Moreau estava com amigos em outro bar próximo ao UpStairs Lounge no dia 24 de junho de 1973, quando um incendiário criminoso regou a escada que subia para o bar com fluido de isqueiro, ateou fogo ao fluido e tocou a campainha. Quando alguém abriu a porta do bar, uma bola de fogo invadiu o lugar.

Um grupo de pessoas fugiu por uma porta nos fundos, mas outro grupo ficou encurralado do outro lado da sala, entre as chamas e as janelas com grades do teto ao chão.

Quando bombeiros extinguiram o incêndio, encontraram uma pilha de corpos carbonizados. Algumas das pessoas estavam abraçadas, outras, pressionadas contra as janelas.

Fiéis da seção de Nova Orleans da igreja Metropolitan Community, que apoiava a comunidade LGBT, estavam reunidos no local depois do serviço religioso. O pastor Bill Larson estava entre os mortos. Seu corpo carbonizado foi deixado encostado nas grades da janela durante horas, em plena vista dos transeuntes.

Larson foi um dos muitos que morreram no lugar sem nunca terem revelado sua homossexualidade às suas famílias, e sua mãe se negou a cuidar de seus restos mortais, disse Robert L. Camina, que dirigiu um documentário sobre o incêndio, "UpStairs Inferno".

"A mãe dele se recusou a buscar as cinzas dele porque ficou envergonhada demais por ter um filho gay", disse Camina. "E esse foi apenas um exemplo. Três outras pessoas nunca chegaram a ser identificadas. Por quê? Alguém deve ter dado pela falta delas."

Essas três pessoas foram sepultadas em túmulos não identificados num cemitério de indigentes, ao lado de uma quarta pessoa, Ferris LeBlanc, cuja família só descobriu no ano passado o que tinha acontecido com ele, contou o diretor do documentário.

"Abriram uma cova no chão, colocaram um saco dentro e cobriram", disse Moreau.

INDIFERENÇA

Figuras públicas da época reagiram com indiferença. O então prefeito de Nova Orleans, Moon Landrieu, não cancelou suas férias. Quarenta anos mais tarde, seu filho Mitch Landrieu, o prefeito atual, declarou um dia de luto público pelas vítimas do incêndio no aniversário da tragédia.

"Hoje as pessoas LGBT têm um lugar à mesa que não tinham na época", falou Clayton Delery-Edwards, autor de um livro sobre o incêndio, publicado em 2014.

O incêndio foi uma ferida aberta na comunidade gay de Nova Orleans durante anos. Ninguém chegou a ser indiciado pelo ataque, e um homem visto por muitos como o principal suspeito nunca chegou a ser detido. Ele cometeu suicídio um ano após o incêndio.

Johnny Townsend, que entrevistou sobreviventes no final dos anos 1980 e em 2014 publicou seus relatos, disse que o 40º aniversário da tragédia a levou à atenção pública de uma maneira que não tinha acontecido antes. "Hoje as pessoas têm mais consciência de sua própria história", ele disse.

Para Moreau, as manifestações de apoio às vítimas de Orlando estão sendo um sinal encorajador de progresso.

"Aquelas pessoas infelizes em Orlando pelo menos sabem que o mundo inteiro lhes está dando apoio. No nosso caso, ninguém se importou conosco."

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: