Folha de S. Paulo


Gorbachev ainda é odiado na Rússia 25 anos após queda da União Soviética

Nos últimos meses, diversas figuras públicas proeminentes, entre as quais pelo menos um associado próximo do presidente Vladimir Putin, insistiram em que a Rússia proclame oficialmente que Mikhail Gorbachev cometeu um crime ao permitir o colapso da União Soviética.

Há quem exija regularmente que Gorbachev seja julgado pelos acontecimentos para, no mínimo, como declarou um legislador russo, expor as operações de uma "quinta coluna" na Rússia.

James Hill/The New York Times
O ex-líder soviético Mikhail Gorbachev, em sua fundação em Moscou, em maio deste ano
O ex-líder soviético Mikhail Gorbachev, em sua fundação em Moscou, em maio deste ano

Mas quando os organizadores de um banquete para celebrar o 85º aniversário de Gorbachev, em março, procuraram o histórico Hotel Ucrânia para realizar o evento, os proprietários do estabelecimento cederam o lugar de graça ao serem informados de que o antigo líder soviético seria o homenageado.

"Eles disseram que, sem Gorbachev, teriam terminado como pequenos comerciantes no mercado, criminosos vendendo produtos proibidos", disse Alexei Venediktov, amigo próximo de Gorbachev e editor-chefe da estação de rádio Eco de Moscou, o principal veículo noticioso para os russos progressistas. "Eles disseram que agora eram os donos daquilo tudo graças a Gorbachev. Custo zero!"

Em entrevista, Gorbachev desconsiderou o fato de que, 25 anos depois do colapso da União Soviética, continua a ser um dos homens mais detestados da Rússia.

"É a liberdade de expressão", ele declarou.

Mas a linha oficial, que denigre a democracia tradicional, combinada à ideia mesma de que ele deveria enfrentar julgamento, obviamente o irrita, e por isso ele produz sem parar artigos, ensaios e livros sobre a necessidade de promover a liberdade na Rússia. Seu mais recente esforço, intitulado "The New Russia", em inglês, foi lançado nos Estados Unidos no final de maio.

LIBERDADE

Também existe muita admiração por ele entre os russos, é claro. Alguns o adoram por ter introduzido a perestroika, ou reestruturação, combinada à glasnost, abertura, que juntas ajudaram a libertar o país das piores repressões do regime comunista. Gorbachev liderou o avanço, ainda que hesitante, rumo à liberdade de expressão, livre empresa e abertura de fronteiras.

"Alguns o amam por trazer a liberdade, e outros o desprezam por trazer a liberdade", disse Dmitri Muratov, editor do "Novaya Gazeta", um dos poucos jornais independentes que restam na Rússia; Gorbachev detém 10% das ações da publicação.

A sociedade em geral o culpa pela perda do império soviético e por tornar os russos cidadãos de um país de segunda classe, ainda que individualmente as pessoas reconheçam que ele abriu novos horizontes para elas e seus filhos.

"A sociedade não gosta dele; ele é o anti-Putin. Putin é o construtor e ele é o demolidor", disse Venediktov, que classifica essa percepção como injusta.

Casa Branca
O então presidente americano Ronald Reagan e Gorbachev na Casa Branca em dezembro de 1987
O então presidente americano Ronald Reagan e Gorbachev na Casa Branca em dezembro de 1987

Na entrevista, Gorbachev declarou que "continua dizendo que a Rússia precisa de mais democracia". A conversa de uma hora de duração aconteceu na sede de sua fundação, hoje decadente, na qual o escritório que ele ocupa é dominado por um retrato a óleo de sua mulher, Raisa, que morreu de leucemia em 1999.

"Ouvimos, mesmo de pessoas próximas a Putin, declarações que enfatizam o autoritarismo, que enfatizam o poder de decisão e que sugerem que a democracia só poderá ser conseguida no futuro distante", disse Gorbachev.

"Acredito que o que precisamos é que a democracia tenha raízes firmes, tenha por base as eleições, e as pessoas tenham a oportunidade de eleger seus líderes em intervalos regulares. Essa é a base da estabilidade na política externa e interna".

ISOLADO

Nos seus anos finais, Gorbachev se tornou uma figura isolada. A maioria de seus contemporâneos já morreu. Por ser crítico da falta de democracia no governo Putin, os canais estatais de TV não o mencionam. Sua morte foi anunciada mais de uma vez.

Gorbachev não culpa Putin diretamente pela falta de democracia na Rússia, ainda que tenha criticado o presidente com mais firmeza quando seu livro foi lançado na Rússia no ano passado.

"Ele começou a sofrer da mesma doença da qual eu sofri: excesso de autoconfiança", disse Gorbachev, na época. "Ele se considera o vice-Deus. Não sei para que assuntos, no entanto".

Gorbachev e outros mencionam diversas razões para que suas críticas sejam contidas. Primeiro, ele não está imune a processos judiciais e portanto, como muitos críticos do governo, se sente cada vez mais inquieto diante da erosão das liberdades civis que o Kremlin promove.

O ex-líder disse ter medo de ser declarado um "agente estrangeiro", rótulo revivido da era stalinista que significa basicamente "espião", e que hoje vem sendo usado para fechar as portas de dezenas de organizações da sociedade civil.

"Existem algumas pessoas de mente reacionária neste país que já me declaram agente estrangeiro –acreditam que eu esteja trabalhando para alguém", disse. É uma declaração e tanto, vinda de um homem que, se tivesse impedido que as coisas mudassem, ainda poderia ser o líder supremo da União Soviética, já que o domínio de alguns de seus predecessores se provou vitalício.

Em segundo lugar, Gorbachev atribui a maior parte dos males políticos e econômicos que afligem a Rússia ao seu odiado rival e sucessor, o ex-presidente Bóris Yeltsin, e por isso poupa Putin de críticas por acreditar que ele está promovendo correções necessárias.

Terceiro, ele concorda com Putin quanto a muitas questões, especialmente a política externa. Apoiou a retomada da Crimeia por Moscou, por exemplo, classificando o referendo público como legítimo –ainda que este tenha sido realizado sob a mira das tropas russas. Essa postura resultou na proibição de que ele visite a Ucrânia por cinco anos.

Como um dos principais responsáveis pelo fim da Guerra Fria, Gorbachev se sente traído pelo Ocidente –particularmente os Estados Unidos– ter decidido assumir o papel de vitorioso e tratado a Rússia como um criado demitido, levando as forças da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Europeia às portas do país.

"No final da Guerra Fria, havia um clima de triunfo entre muitos norte-americanos", disse. "Esse foi o ponto de partida para o colapso de tudo".


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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