Folha de S. Paulo


Apesar de reaproximação, cubanos fogem para EUA em barcos caseiros

O sinal de Deus e de Nossa Senhora chegou perto do final da viagem perigosa de Cuba à Flórida: uma dúzia de golfinhos nadou até perto do barco a vela dos migrantes, sobrecarregado e de construção artesanal. Aparecendo e reaparecendo na superfície da água, os golfinhos os guiaram, eles pensaram, em direção a um futuro reimaginado.

"É verdade que somos abençoados", disse Rolando Quintero Ferrer, 27, um dos 12 passageiros do barco, na gravação em vídeo que fez da viagem. "Que coisa linda. Agora ninguém chegará perto de nós."

O presságio foi certeiro. Depois de cinco dias comprimidos no barco, incluindo 24 horas passados numa ilhota desabitada, os homens chegaram até um cais em Tavernier, no arquipélago de Florida Keys. Eram 4h20. Eles saíram do barco, apontaram para as placas de estacionamento em inglês, gritaram e choraram. Então pegaram um celular e, sabendo que seriam bem-recebidos, discaram 911, um truque aprendido com a televisão americana.

US Coast Guard - 18 mar. 2016/AFP
Fotografia divulgada por Guarda Costeira dos EUA mostra embarcação cubana no no estreito da Flórida
Fotografia divulgada por Guarda Costeira dos EUA mostra embarcação cubana no no estreito da Flórida

"Veja esta água maravilhosa", brincou o marceneiro Yosvanys Chinea, 42, segurando uma garrafa d'água que um policial lhe deu quando chegaram. "Já está curando meus vermes. Isso é uma coisa que não me acontece há 42 anos."

Desde que o presidente Barack Obama reatou laços diplomáticos com a ilha, em dezembro de 2014, Cuba vem passando por transformações importantes.

Há cada vez mais voos entre Miami e Havana e cada vez mais passageiros. Cubanos estão ampliando suas microempresas privadas com a ajuda de parentes que vivem nos EUA.

No entanto, uma coisa não mudou: a ânsia de cubanos de viajar aos EUA em embarcações precárias. É um sinal de que em vez de diminuir, as preocupações estão aumentando: os cubanos temem que as proteções que lhes garantiam status legal nos Estados Unidos, que não existem para imigrantes de outros países, possam ser rescindidas.

Desde 1º de outubro, mais de 3.500 cubanos chegaram à costa dos EUA, o que lhes permite permanecer legalmente no país, ou foram abordados pela Guarda Costeira no mar e mandados para casa. O número de cubanos chegando neste ano pode superar tudo o que se viu desde o grande êxodo de balseiros na década de 1990.

MOTIVOS

Eles vão aos EUA por duas razões. A vida em Cuba ainda é incalculavelmente difícil, especialmente para os cubanos que vivem fora da agitação de Havana. A liberdade de expressão ainda é fortemente limitada e os salários podem ser de apenas US$ 16 a US$ 22 mensais.

Os migrantes também são impelidos pelo pânico.

Eles acreditam que o Congresso americano esteja disposto a revogar a Lei de Ajuste Cubano de 1966, que dá aos cubanos um privilégio singular: o direito automático de residência no país, um ano e um dia após sua chegada.

As tentativas de revogar a lei feitas até agora não tiveram êxito, mas o sentimento anti-imigrantes em Washington abre essa possibilidade, especialmente porque hoje os cubanos estão sendo vistos nos EUA como migrantes econômicos, e não políticos.

A Guarda Costeira disse que os cubanos estão ficando mais agressivos em seus esforços para evitar ser capturados.

Às vezes eles mergulham no mar ou se recusam a subir nas embarcações da Guarda Costeira.

Na sexta-feira (20), diante da aproximação da Guarda Costeira, 19 cubanos pularam do barco em que estavam e nadaram até um farol a oito quilômetros do arquipélago de Florida Keys; mais tarde, desceram do farol, e é provável que sejam enviados de volta a Cuba.

Dois meses atrás, seis cubanos em um barco tinham ferimentos a bala e disseram ter sido atacados no estreito da Flórida. Mas nenhuma das balas atingiu um órgão importante, fato que causou algum ceticismo.

"Já tivemos casos no passado de ferimentos de bala autoprovocados, e há outros casos de descumprimento das normas", disse um oficial da Guarda Costeira, Mark Barney. "Muitas vezes eles continuam a navegar e não nos deixam tirá-los dos barcos. É um problema de segurança. Toda hora há casos de pessoas encontradas na água, vivas ou mortas, de migrantes que desaparecem."

PLANO DE ESCAPE

Os cubanos visitados pelos golfinhos também disseram que tinham um plano para escapar das autoridades. "Íamos todos pular na água e sair nadando", disse Quintero.

Asael Veloso, agricultor de 34 anos, já tinha tentado deixar Cuba três anos atrás. Ele vendeu tudo o que tinha e embarcou de carona com outro grupo de chamados balseiros. Mas o barco deles foi capturado a oito horas de distância de Cuba, e ele voltou para casa com menos do que tinha quando saiu.

Todo o mundo contribuiu. Chinea, o marceneiro, e Edel Sánchez passaram 20 dias numa casa de secagem de tabaco construindo o barco a vela com restos de madeira.

O barco tinha espaço para seis pessoas, mas acabou zarpando com 12. Duas delas ajudaram a pilotar o barco e manejar as velas. Alguns dos cubanos tinham dinheiro ou força. Alguns tinham contatos úteis.

Eles se comprimiram dentro do barco. Embora a maioria dos cubanos encare a religião com desdém, os homens não hesitaram em pedir a bênção de Deus.

"Eu fiz promessas a todo o mundo: de Deus até a Virgem da Caridade do Cobre", revelou Quintero, falando da santa padroeira dos balseiros.

Eles precisariam dessas promessas. Durante dois dias apavorantes, não conseguiram sair das águas cubanas.

"Zarpamos com as correntes e o vento contra nós", contou Onelio Rodríguez, agricultor de 26 anos e rosto de criança. "Mas Deus é lindo."

Eles dormiram, fumaram cigarros, tocaram música latina, falaram de namoradas e filhos, zombaram uns dos outros —especialmente de um deles que ficou fortemente mareado assim que embarcou e praticamente não se mexeu durante os cinco dias da travessia— e comeram nozes e bolachas. E discutiram —sobre quem iria remar, quem podia dormir à noite, quem estava ocupando espaço demais.

A sorte tinha estado do seu lado; eles não tinham avistado a Guarda Costeira e não tinha havido uma tempestade, algo que muitas vezes leva essas travessias a fracassar. Foi então que os golfinhos os saudaram, e seu otimismo cresceu. "Vamos coroar", falou Veloso, descrevendo a chegada deles e a cerveja gelada que os aguardava.

O GPS os informou que eles estavam a 29 quilômetros das Florida Keys. Na escuridão, os homens começaram a remar. Finalmente avistaram um quebra-mar numa praia em Tavernier e depois um cais. Remaram até o cais e tiraram o celular.

Policiais vieram, e os cubanos fizeram fotos com eles, abrindo a bandeira dos EUA que tinham levado.

FUTURO

Na manhã seguinte eles foram levados para o escritório do Serviço de Migração e Refugiados da Conferência dos Bispos Católicos.

O centro preenche papelada para cubanos que chegam ao país e para os que não têm parentes nos Estados Unidos, os alimenta e hospeda até que possam ser transferidos para outros Estados. Migrantes e refugiados cubanos são reassentados em várias partes dos EUA há décadas, de modo que nenhuma região carrega sozinha o ônus de ajuda-los a começar vida nova no país.

Para os cubanos, o Quality Inn, em Doral, a oeste de Miami, parecia o paraíso: ar condicionado, televisão com dezenas de canais e mais ovos e carne do que eles jamais tinham visto na vida.

Pouco depois, metade do grupo seria levado a Las Vegas e a outra metade a Austin, no Texas, onde vão procurar trabalho. Os programas de reassentamento do centro têm índice de entre 70% e 90% de êxito na busca de empregos para os refugiados, disse Juan F. Lopez, diretor adjunto do centro.

"Este é um país de leis, mas dizemos 'vamos encarar esta questão do ponto de vista humanitário'", falou Lopez. "Não queremos que as pessoas cheguem aqui e imediatamente tenham que depender de assistência pública."

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: