Folha de S. Paulo


Análise

Política externa de Serra demole princípios de Lula e Dilma

Não sobrou pedra sobre pedra.

Em discurso de cerca de 15 minutos durante a cerimônia de transmissão de cargo, o novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, demoliu os principais princípios da política externa dos últimos 13 anos, dos governos Lula e Dilma.

Abaixo, alguns dos pontos abordados, o contexto e as entrelinhas:

Pedro Ladeira/Folhapress
O novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, discursa após assumir
O novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, discursa após assumir

1. "A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior"

A oposição a Dilma e Lula constantemente acusava a política externa brasileira de ser "ideologizada", por causa da proximidade da administração e, principalmente, do assessor internacional Marco Aurelio Garcia com governos de esquerda. Já em sua primeira diretriz, o novo chanceler disse que a política externa não estará a serviço de uma ideologia, de um partido.

2. "Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país"

Recado direto para países bolivarianos, como Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, que questionaram a legalidade do afastamento da presidente Dilma Rousseff.

O Itamaraty sob Serra já emitiu notas rechaçando os comentários. A diretriz traduz para termos mais diplomáticos a frase recente do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado: "Imagine ouvir calado países como Cuba e Venezuela darem lições de democracia?"

3. "O Brasil assumirá a especial responsabilidade que lhe cabe em matéria ambiental (...) a fim de desempenhar papel proativo e pioneiro nas negociações" sobre mudança do clima

Serra e seus colaboradores próximos defendem que o país se descole de nações em desenvolvimento "protecionistas" nas negociações do clima e seja mais ambicioso nas ofertas.
O discurso teve grande colaboração do ex-ministro Rubens Ricupero, que é muito próximo a Serra, e de Sergio Amaral.

Depois de ser ministro da Fazenda, Ricupero foi ministro do Meio Ambiente e propõe que o Brasil seja muito mais audacioso nas negociações do clima. Amaral foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso e porta-voz da Presidência no primeiro mandato do tucano. Terá cargo na gestão Serra.

Outros "discípulos" de Ricupero, como Marcos Galvão, atualmente representante do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), e Roberto Jaguaribe, embaixador na China, devem voltar ao Brasil para assumir cargos —Galvão seria um segundo secretário-geral na nova estrutura do Itamaraty, e Jaguaribe deve ir para a Apex.

4. "Na ONU e em todos os foros globais e regionais a que pertence, o governo brasileiro desenvolverá ação construtiva em favor de soluções pacíficas e negociadas para os conflitos internacionais e de uma adequação de suas estruturas às novas realidades e desafios internacionais"

A luta pelas reformas das instituições internacionais como a ONU, FMI e Banco Mundial para que melhor reflitam a nova ordem mundial, uma bandeira das administrações petistas, é mencionada apenas indiretamente como "adequação de suas estruturas às novas realidades".

Nenhuma menção à reforma do Conselho de Segurança da ONU, obsessão no governo Lula que já havia sido posta de lado no governo Dilma.

5. "O Brasil não mais restringirá sua liberdade e latitude de iniciativa por uma adesão exclusiva e paralisadora aos esforços multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como aconteceu desde a década passada, em detrimento dos interesses do país.

O multilateralismo que não aconteceu prejudicou o bilateralismo que aconteceu em todo o mundo. Quase todo mundo investiu nessa multiplicação, menos nós. Precisamos e vamos vencer esse atraso e recuperar oportunidades perdidas"

Serra fez um ataque frontal à aposta do governo brasileiro nas negociações multilaterais da OMC, que, na prática, morreram. Reflete a percepção da oposição de que o Brasil perdeu tempo apostando na OMC em vez de fechar mais acordos bilaterais. Ele faz a ressalva de que a OMC é a única via para ganhos no setor agrícola, mas diz que não se pode apostar nisso em detrimento de acordos bilaterais. Deve ser aplaudido por empresários, que vinham pressionando para a busca de mais acordos.

6. "Por isso mesmo, daremos início, juntamente com o Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, com a cobertura da Camex (Câmara de Comércio Exterior) e em intensa consulta com diferentes setores produtivos, a um acelerado processo de negociações comerciais, para abrir mercados para as nossas exportações e criar empregos para os nossos trabalhadores"

Serra mostra que reforçar o comércio exterior deve ser um dos principais objetivos do ministério e aproxima o Itamaraty do centro decisório da política econômica do novo governo - que era a ambição inicial do ministro.

7. "Um dos principais focos de nossa ação diplomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes para a reorganização da política e da economia.

Precisamos renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objetivo de fortalecê-lo, e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia"

Muitos críticos da política externa dos últimos governos, como o ex-embaixador em Washington Rubens Barbosa, pedem a flexibilização do Mercosul para que se transforme apenas em área de livre comércio, em vez de união aduaneira. Dessa maneira, o Brasil estaria livre para negociar acordos comerciais sem chancela dos outros membros do Mercosul.
Mas a fala de Serra mostra que o novo chanceler não deve ser tão radical.

Ricupero, em entrevista à Folha neste mês, afirmou: "Não se sabe se transformar o Mercosul em área de livre comercio traria benefícios, e a Argentina agora tem um presidente, Mauricio Macri, que não seria obstáculo a negociações comerciais", diz. É exatamente esta a linha adotada por Serra, ao sublinhar que a relação com a Argentina será prioridade, agora que Brasil e o vizinho passaram a "compartilhar referências semelhantes" —ou seja, Cristina Kirchner, alinhada com os governos petistas, foi sucedida por Macri.

A aproximação com a Aliança do Pacífico já está em curso por meio de diversos acordos de investimentos e serviços. Vem do raciocínio de que o Brasil estava alinhado com os países que menos crescem no continente, como Venezuela, Argentina e Equador, e alienado dos mais dinâmicos, que são os da Aliança do Pacífico.

8. "Vamos ampliar o intercâmbio com parceiros tradicionais, como a Europa, os EUA e o Japão. Com os EUA, nós confiamos em soluções práticas de curto prazo para a remoção de barreiras não tarifárias, que são, no mundo de hoje, as essenciais"

Voltar a dar atenção ás relações com países ricos e não apenas nos concentrar Sul-Sul, essa é a mensagem. Com EUA, a meta é "desideologizar" a relação. Voltar a aspectos práticos que atingem os empresários e o país, como as barreiras não tarifárias a produtos.

9. "Será prioritária a relação com parceiros novos na Ásia, em particular a China. Estaremos empenhados igualmente em atualizar o intercâmbio com a África, o grande vizinho do outro lado do Atlântico.

Não pode esta relação restringir-se a laços fraternos do passado e às correspondências culturais, mas, sobretudo, forjar parcerias concretas no presente e para o futuro.

Ao contrário do que se procurou difundir entre nós, a África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos. Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos"

Critica a política de aproximação com a África, marca do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que abriu 17 embaixadas e fez inúmeras viagens a países africanos. Ao dizer a "África moderna não pede compaixão", remete ao perdão da dívida de países africanos durante o governo Dilma.

Ao dizer "Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos", aponta para a discussão sobre fechamento de embaixadas em países africanos e do Caribe que foram abertas nos governos petistas.

A Folha revelou que Serra pediu um estudo para analisar o custo e a utilidade dos postos diplomáticos abertos nos governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff para, eventualmente, pedir o fechamento de alguns deles

10. "Nas políticas de comércio exterior, o governo terá sempre presente a advertência que vem da boa análise econômica, apoiada em ampla e sólida consulta com os setores produtivos. É ilusório supor que acordos de livre comércio signifiquem necessariamente a ampliação automática e sustentada das exportações.

Só há um fator que garante esse aumento de forma duradoura: o aumento constante da produtividade e da competitividade. Se alguém acha que basta fazer um acordo e abrir, que isso é condição necessária suficiente, está enganado. É preciso investir no aumento constante da competitividade e da produtividade"

De novo, Serra reforça o viés econômico que terá o ministério sob seu comando.

Última diretriz: "Eu citaria uma que temos que cumprir, colaborando com os ministérios da Justiça, da Defesa e da Fazenda, no que se refere à Receita Federal: a proteção das fronteiras, hoje o lugar geométrico do desenvolvimento do crime organizado no Brasil, vamos ter isso claro, que se alimenta do contrabando de armas, contrabando de mercadorias, que é monumental, e do tráfico de drogas.

Em especial, nos empenharemos em mobilizar a cooperação dos países vizinhos para uma ação conjunta contra essas práticas criminosas que tanto dano trazem ao nosso povo e à nossa economia"

Serra tem especial preocupação com a segurança das fronteiras. Em sua campanha presidencial de 2010, ele afirmou que o governo boliviano era "cúmplice do tráfico", dizendo que as quadrilhas de traficantes que atuam a partir do país vizinho eram responsáveis pelo envio de até 90% da cocaína produzida no país para ser consumida no Brasil.

Itamaraty: "Quero progressivamente retirar o Itamaraty da penúria de recursos em que foi deixado pela irresponsabilidade fiscal que dominou a economia brasileira nesta década. E no governo do Presidente Temer, o Itamaraty volta ao núcleo central do governo"

O Itamaraty sofreu com sucessivos cortes e contingenciamento de gastos nos últimos anos. A participação do Itamaraty no Orçamento total do Executivo, que já era pequena, caiu a quase a um quarto em 2015 em relação a 2003 —de 0,5% para 0,13%. Muitos diplomatas estão com o pagamento de seus aluguéis atrasado. Embaixadas chegaram a ficar sem recursos para pagar a conta de luz, no ano passado.

Quando diz que o Itamaraty vai voltar ao núcleo central do governo, trata-se de uma crítica à presidente Dilma Rousseff, que teria negligenciado a política externa, por falta de interesse, o que teria resultado no enfraquecimento do ministério e sucessivos ministros.


Endereço da página:

Links no texto: