Folha de S. Paulo


Vencedor do Pulitzer narra trajetória do Estado Islâmico e seus personagens

Não é uma das histórias mais fáceis de serem contadas. A ascensão do Estado Islâmico, organização terrorista que hoje controla partes do Iraque e da Síria, é uma narrativa confusa, violenta e às vezes vazia de sentido.

Mas é um relato que o repórter Joby Warrick, 55, conseguiu domar. Seu livro "Black Flags - The Rise of Isis", recentemente premiado com um Pulitzer, é o resultado de anos de investigação e dezenas de entrevistas.

Warrick, que escreve para o "Washington Post", conta essa história a partir de seus personagens. Em especial, ele dá destaque ao terrorista jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, fundador da organização que com o tempo transformou-se no atual Estado Islâmico, apesar da morte de seu líder em 2006.

"Black Flags" reúne relatos de diversos protagonistas dos eventos políticos em torno do Estado Islâmico, incluindo funcionários da inteligência americana e jordaniana. As descrições da vida de Zarqawi na prisão são especialmente impactantes.

Reportagens e análises sobre o EI hoje destacam a figura do auto-proclamado califa Abu Bakr al-Baghdadi. Mas foi Zarqawi quem traçou a estratégia que está na base dessa violenta organização.

Suas ações foram marcadas, por exemplo, pela violência sectária e pela ideia de que um califado poderia ser criado em um caos político.

"Todo o mundo menosprezou Zarqawi. É o que faz dele uma figura sedutora para mim", diz Warrick em entrevista à Folha. "A figura icônica para muitos dos militantes ainda é Zarqawi. Ele inovou e criou muitas das táticas utilizadas hoje", afirma.

Warrick começou a trabalhar no livro em 2013, antes de a organização terrorista declarar seu califado —e antes, portanto, de receber a atenção que ela tem hoje.

O repórter prevê que o Estado Islâmico volte a um período como aquele vivido por seus líderes em 2010, quando suas operações eram irrelevantes. Mas esse resultado, diz, não virá no curto prazo.

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Folha - O senhor tem um interesse óbvio por Abu Musaab al-Zarqawi. Por quê?
Joby Warrick - Me interesso por Zarqawi desde a época em que todo o mundo pensava que a Al Qaeda no Iraque, liderada por ele, estava destruída. Eu achava que ele era pouco reconhecido pelo que fez. Zarqawi é muito diferente de Osama bin Laden, e ele é ainda hoje uma presença forte entre terroristas.

As ideias de Zarqawi ainda são predominantes entre os líderes do EI?
Sim. [O auto-proclamado califa] Abu Bakr al-Baghdadi e os líderes atuais não são muito visíveis, por sua própria segurança. A figura icônica para muitos dos militantes ainda é Zarqawi. Ele inovou e criou muitas das táticas utilizadas hoje, como as imagens de homens de laranja tendo suas cabeças cortadas. Isso é Zarqawi 2004. É copiado dele, assim como a distribuição dessas imagens horríveis.

O senhor escreve que Zarqawi foi menosprezado. Bin Laden também falhou em reconhecer a liderança dele?
Sim. Todo o mundo menosprezou Zarqawi. É o que faz dele uma figura sedutora para mim. Zarqawi surpreendeu todo o mundo. Ele não era uma pessoa particularmente esperta, mas tinha uma visão e uma mente estratégica que permitiram que criasse sua organização.

Há muita informação sobre Zarqawi no seu livro. Não tanta sobre Baghdadi.
Ele ainda é um mistério. Conversei com muita gente de inteligencia. A informação disponível é suspeita. Há uma biografia publicada por militantes, em que ele aparece como uma figura heroica. É fácil ver que é ficção. Há muitas coisas que não sabemos.

Saberemos mais?
Os iraquianos sabem mais do que os americanos. Ele é o cara deles. Talvez um grande jornalista árabe faça um dia uma biografia sobre Baghdadi.

O senhor parece impressionado pela inteligência jordaniana também, mas em geral damos mais crédito aos EUA e a Israel nesse campo.
Foi minha impressão. Passei algum tempo lá. E é uma visão compartilhada com outras pessoas. Dependemos deles mais do que é publicamente dito. Eles vão a lugares aos quais os americanos não podem ir.

Também há uma boa imagem do monarca jordaniano Abdullah, no livro.
Ele não é um líder perfeito, e muitas pessoas criticam o governo jordaniano. Mas eu vejo ele como alguém que foi bastante sábio na habilidade de enxergar as tendências na região. Ele avisou os americanos sobre a invasão, e seus vizinhos sobre um vácuo de poder. Suas previsões se concretizaram.

Há alguma responsabilidade americana no surgimento do Estado Islâmico?
Eu acredito que o Estado Islâmico não existiria sem Zarqawi, e ele não existiria como o conhecemos sem a invasão do Iraque [em 2003]. Nós demos a ele uma causa para recrutar e para receber doações.

É uma grande responsabilidade.
A história já está julgando os tomadores de decisão por esse erro. O julgamento só vai pior com o tempo.

A extrema violência do Estado Islâmico vai eventualmente alienar seus seguidores?
O que eles conseguiram fazer ao serem tão brutais foi estimular uma parte específica dos extremistas. Satisfizeram sua base de apoio. Mas essa é uma audiência limitada. Há rejeição em massa entre jovens árabes a essa mensagem. Ela é repulsiva demais. Pessoas razoáveis rejeitam a afirmação de que a violência é divinamente inspirada, que é o que Deus quer.

Os Estados Unidos tornaram a organização de Zarqawi "irrelevante" em 2010, nas palavras do seu livro. Isso pode ser feito com o EI?
Não é uma coisa para o curto prazo. Eles conseguiram se espalhar, e atuam hoje em outros lugares. Vai ser difícil eliminá-los. Mas vamos chegar a um ponto como o de 2010, em que o núcleo da organização estará dispersado, sem um esconderijo e com seus líderes sendo perseguidos. Esse califado vai cair, em algum momento. Então será uma questão de vigilância.


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