Folha de S. Paulo


Em meio a crise política e ataques, Iraque coloca a mídia sob controle

O governo iraquiano, liderado pelos xiitas, fechou os escritórios de dois canais de televisão populares junto aos iraquianos sunitas e tirou um programa satírico do ar, reforçando seu controle sobre a mídia em um momento de intensificação das tensões políticas em Bagdá.

Bagdá foi novamente alvo de atentados nesta terça-feira (17), em três ataques que deixaram mais de 50 mortos e 100 feridos.

As medidas repressivas, que começaram em março, parecem ter sido causadas pela preocupação de que os canais possam inflamar as rivalidades sectárias, que as forças de segurança distendidas encontrariam dificuldades para conter. Mas também causam medo quanto à liberdade de expressão.

Thaier Al-Sudani - 12.mai.2016/Reuters
Estúdio da sucursal da rede Al Jazeera em Bagdá foi abandonado após fechamento do escritório
Estúdio da sucursal da rede Al Jazeera em Bagdá foi abandonado após fechamento do escritório

A Comissão de Comunicação e Mídia (CCM) fechou o escritório em Bagdá da rede árabe de TV Al Jazeera e o canal local de TV Al Baghdadia, e ordenou a suspensão das transmissões do programa satírico "Albasheer Show".

O governo afirmou que a Al Jazeera e o "Albasheer Show", que zomba de figuras iraquianas poderosas mais ou menos como o "Daily Show" faz nos Estados Unidos ou o "Le Petit Journal" faz na França, violaram um código de conduta profissional.

RESTRIÇÕES À MÍDIA

A CCM é uma agência do Estado encarregada de implementar as políticas do governo. A organização não ofereceu muitos detalhes e recusou pedidos de comentário.

"Eles tinham algumas reservas ao nosso uso do termo 'milícias' em referência ao Hashid Shaabi", disse Waleed Ibrahim, o chefe da sucursal da Al Jazeera no Iraque, se referindo a uma coalizão de grupos paramilitares em sua maioria xiitas formados para combater o Estado Islâmico.

Ele disse que a CCM também objetou a opiniões expressas no canal sediado no Qatar por convidados de programas de entrevistas gravados em Doha. "Tentamos explicar que os pontos de vista são dos convidados e não necessariamente os nossos", ele afirmou.

O Al Baghdadia, canal de TV controlado pelo empreendedor iraquiano Awn al-Khashlok e que exibe programas populares junto à minoria sunita, foi fechado em março. Uma declaração da CCM afirmou que o canal não dispunha da devida autorização.

Trata-se de algumas das mais fortes restrições à mídia adotadas nos quase dois anos de mandato do primeiro-ministro Haider al-Abadi, um político islâmico xiita moderado que assumiu prometendo curar a divisão entre os sunitas e a maioria xiita. O gabinete dele não respondeu a pedidos de comentário.

COBERTURA CRÍTICA

O predecessor de Abadi, Nuri al-Maliki, decretou um estado de emergência e restringiu a cobertura de mídia em 2014, depois que o Estado Islâmico capturou um terço do território do país. As restrições foram relaxadas depois que Abadi o sucedeu.

Maliki, aliado bem próximo do Irã, havia revogado a licença da Al Jazeera um ano antes, acusando a rede sediada em Doha de adotar tom sectário em sua cobertura de manifestações sunitas contra ele. A licença foi restaurada no final do ano passado.

Khalid al Mousily/Reuters
Carro destruído por explosão em atentado em mercado de Bagdá
Carro destruído por explosão em atentado em mercado de Bagdá

Os governos iraquianos liderados pelos xiitas têm relacionamentos voláteis com o vizinho Qatar e outros países do Golfo Pérsico desde a derrubada do autocrata Saddam Hussein, em 2003.

Os líderes do país, que contam com apoio iraniano, acusaram os vizinhos sunitas de empregar veículos de mídia dotados de amplos recursos financeiros para destacar o sofrimento dos súbitas e cobrir os protestos contra Maliki em 2013.

A mídia com apoio xiita, de sua parte, enfrenta críticas por sua cobertura, na qual acusa os países do Golfo Pérsico de apoiar os militantes sunitas no Iraque.

CRISE POLÍTICA

As Nações Unidas e os Estados Unidos expressaram preocupações com o fechamento da Al Jazeera.

"Esse tipo de ação jamais servirá ao combate contra o Daesh (Estado Islâmico), à medida que o Iraque avança e começa a tentar reconciliar suas diversas comunidades", declarou um porta-voz do Departamento de Estado norte-americano em Washington este mês.

Khalid al Mousily/Reuters
Destruição deixada por explosão causada por terroristas em mercado de Bagdá
Destruição deixada por explosão causada por terroristas em mercado de Bagdá

As forças de segurança do Iraque, enquanto combatem o Estado Islâmico no norte e oeste do país com a ajuda de ataques aéreos de uma coalizão liderada pelos Estados Unidos, estão em alerta urgente em Bagdá. Atentados com explosivos continuam a ser ocorrência comum na capital - houve três na quarta-feira, matando quase 80 pessoas - e a crise política pode se deteriorar em confrontos entre os partidários de políticos rivais.

O governo está paralisado há semanas por disputas sobre a proposta de Abadi de substituir ministros afiliados a partidos por tecnocratas independentes, depois de apelos populares pelo desmonte das redes de compadrio político.

PROTESTOS

O poderoso líder religioso xiita Moqtada al-Sadr ordenou a seus seguidores que protestem a fim de pressionar Abadi a implementar as promessas de reforma.

Abadi propôs uma reorganização do ministério, mas o Legislativo não a aprovou. Legisladores brigaram a socos na câmara um mês atrás, e não foram convocadas novas sessões depois que manifestantes invadiram o complexo do Legislativo duas semanas mais tarde.

"Com cada crise política, o governo busca áreas que atraiam a atenção do público. Sempre que um veículo de mídia toma um problema por foco, eles ordenam seu fechamento", disse Ziyad al-Ajili, diretor do Observatório da Liberdade de Imprensa Iraquiano, uma organização fiscalizadora.

"No momento estão implementando as mesmas decisões adotadas no passado, quando a liberdade de imprensa era verdadeiramente inexistente", ele disse, em referência aos oito anos de governo de Maliki.

A CCM divulgou um alerta sobre um programa veiculado pelo canal de TV Al Ahad, operado pela milícia Asaib Ahl al-Haq, pró-iraniana. O apresentador do programa, Wajih Abbas, comparou o califa muçulmano Othman, do século 7, a Saddam Hussein, ofendendo os sentimentos dos sunitas.

MAU HUMOR

Outro alvo da CCM foi um grupo de jovens iraquianos irreverentes que produzem o programa satírico "Albasheer Show", na vizinha Jordânia.

O Sumaria, um canal independente, foi forçado a tirar o programa do ar no mês passado, ainda que seus quadros muitas vezes satirizem o Estado Islâmico, zombando da crueldade e violência de seus militantes.

A proibição da CCM aconteceu por conta de um episódio que ridicularizava um líder religioso xiita por discutir se beber leite de uma vaca morta era permissível em termos religiosos. O programa continua disponível no YouTube e no canal em árabe da TV estatal alemã Deutsche Welle.
Seu apresentador, Ahmed al-Basheer, disse ter recusado exigências governamentais de que mudasse o conteúdo do programa.

"Essa é a fórmula do programa. Ele é escrito assim, e desfruta desse nível de liberdade", ele disse. "Continuaremos a criticar e ridicularizar os corruptos".

Os jornalistas enfrentam mais que censura governamental, no Iraque. O Comitê de Proteção aos Jornalistas, sediado em Nova York, informou que pelo menos seis jornalistas foram mortos pelo Estado Islâmico em Mosul, no ano passado, e que em janeiro dois deles foram mortos a tiros em Diyala, uma região sob controle do governo no leste do país.

A Repórteres Sem Fronteiras classificou o Iraque como 153º colocado no seu ranking mundial de liberdade de imprensa 2016, que engloba 180 países.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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