Folha de S. Paulo


Perda de força do EI gera debate sobre futuro de possíveis prisioneiros

A facção terrorista Estado Islâmico os chama de "inghimasi": os soldados rasos fanáticos que pretendem lutar até a morte.

À medida que a coalizão liderada pelos EUA vem reconquistando território no Iraque e na Síria, esse fervor tem evitado que a questão de prisioneiros seja um problema: os tiroteios só acabam quando todos os combatentes do EI morrem.

No entanto, essa situação pode mudar à medida que a coalizão se aproxima dos maiores redutos urbanos do Estado Islâmico —Mossul, no Iraque, e Raqqa, na Síria—, criando um potencial problema para os EUA. Se a coalizão vencer e milhares de membros comuns de um Estado Islâmico em colapso não tiverem para onde recuar, será que eles vão começar a se render em grande número? E, se isso acontecer, quem será responsável por mantê-los encarcerados?

Depois das experiências da última década com as guerras no Afeganistão e no Iraque, a administração Obama está decidida a não lançar novas operações de detenção em grande escala. No entanto, não está claro se seus aliados em campo, especialmente os rebeldes na Síria, estão preparados para manter grande número de prisioneiros em detenção. Isso gera a perspectiva de consequências desagradáveis depois de uma vitória possível.

"Se eles não forem mortos, mas detidos, o que nos preocupa são as condições de detenção, quem seria o responsável por isso e como seria feito", disse o presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer.

William K. Lietzau, que entre 2010 e 2013 foi o responsável no Pentágono pela política de detenção, disse que nos escalões superiores da administração Obama há ampla oposição à possibilidade de realizar a detenção de prisioneiros em tempo de guerra. Mas a alternativa, disse, pode levar a crimes de guerra se combatentes locais apoiados pelos EUA receberem prisioneiros em número que supere sua capacidade.

"Se os números começarem a subir, vão fuzilar os prisioneiros e nem ficaremos sabendo", disse Lietzau.

REPETIÇÃO DO CAOS?

Ninguém deseja uma repetição do caos que ocorreu no Afeganistão durante a queda do governo do Taleban, em dezembro de 2001. Centenas ou possivelmente milhares de prisioneiros de guerra do Taleban que tinham se rendido a forças leais a um chefe militar apoiado pelos EUA foram mortos.

Porém, ao mesmo tempo em que organizações internacionais de direitos humanos dizem também estar preocupadas em garantir que detentos recebam tratamento digno, parece haver pouco desejo da parte delas que os EUA criem uma nova prisão para prisioneiros de guerra.

Esses grupos passaram a última década criticando as violações cometidas nas instalações carcerárias antes operadas na base aérea de Bagram, no Afeganistão, e em Abu Ghraib, no Iraque, além da prisão de Guantánamo, Cuba, que continua aberta.

Por razões semelhantes, autoridades dos EUA dizem que não querem a responsabilidade de cuidar de grande número de prisioneiros do Estado Islâmico.

"Os EUA não pretendem promover a detenção de longo prazo de prisioneiros do EI nem enviar tais detentos à prisão de Guantánamo", disse Myles Caggins, porta-voz do Conselho Nacional de Segurança.

DISFARCE

Em entrevista recente, Falih al-Essawi, chefe do comitê de segurança em Anbar, no Iraque, disse que, quando as forças de segurança iraquianas retomaram Ramadi, recentemente, detiveram 1.870 pessoas.

Dessas, disse ele, 300 se confessaram membros do Estado Islâmico, enquanto o restante afirmou ser civil. Até agora, porém, a captura de um combatente do EI após uma batalha tem sido uma raridade.

"Os militantes estrangeiros, em sua maioria, são homens-bomba", disse Al-Essawi. "Muitos deles morreram nos ataques aéreos da coalizão, em ataques das forças iraquianas ou nas batalhas, e alguns recuaram para outras áreas."

27. dez. 2016 - AFP
Soldados iraquianos inspecionam equipamento militar na região de Ramadi para ofensiva contra EI
Soldados iraquianos inspecionam equipamento militar na região de Ramadi para ofensiva contra EI

De acordo com Maurer, da Cruz Vermelha, também é possível que combatentes e outros membros do Estado Islâmico procurem "se esconder, jogar fora suas armas e se misturar à população local".

Christoph Wilcke, pesquisador da Human Rights Watch especializado no Iraque, disse que esse cenário pode permitir que combatentes do EI que são responsáveis por atrocidades específicas, como o massacre de milhares de yazidis em 2014, fiquem impunes.

A alternativa seria deter grande número de pessoas, levá-las a locais temporários de triagem e ali, por meio de interrogatórios, procurar identificá-las e determinar o que fizeram.

Mas não está claro quem tem a autoridade legal de julgar pessoas nas regiões anárquicas da Síria. E quem levasse prisioneiros em custódia ficaria responsável por traçar um plano de longo prazo para lidar com detentos vistos como perigosos mas que não podem ser levados a julgamento por algum motivo, como a falta de provas admissíveis em um tribunal, nem repatriados, porque poderiam ser torturados.

Problemas desse tipo também dificultaram a tentativa da administração Obama de fechar a prisão de Guantánamo. E também haveria uma complicação diplomática: o Estado Islâmico atraiu milhares de seguidores vindos de muitos países, incluindo países da Europa, o que levanta a perspectiva de negociações com outros países que têm critérios e níveis diversos de interesse em acompanhar o tratamento dado a seus cidadãos.

PRISÕES CURDAS

O potencial de um grande número de prisioneiros apresentar esse tipo de desafios a alguém vem sendo discutido há meses em reuniões de planejamento, tanto na administração Obama quanto com seus parceiros na coalizão.

Na falta de opções boas, a política padrão da administração Obama vem sendo levar em custódia os prisioneiros de "valor mais alto" para interrogá-los, algo que os EUA fez apenas em duas ocasiões com prisioneiros do Estado Islâmico. Ambos foram transferidos depois para prisões curdas.

A premissa é que o governo iraquiano, dominado por xiitas, ou as forças curdas iraquianas vão manter em prisão e, quando é o caso, levar a julgamento quaisquer soldados e simpatizantes do EI que capturarem.

"Não estamos equipados para garantir detenção de longo prazo", disse o porta-voz das forças militares americanas em Bagdá, coronel Steve Warren.

Wilcke, o pesquisador da Human Rights Watch, disse que seu grupo recebeu alguns relatos de abusos de direitos humanos cometidos em prisões curdas, além de relatos de abusos mais frequentes e graves em prisões do Iraque administradas pelo governo.

Ele também citou o julgamento no Iraque de 40 pessoas acusadas de serem membros do Estado Islâmico, que foram sentenciadas à morte em um processo sumário em fevereiro. Grupos de defesa dos direitos humanos disseram que o julgamento foi uma farsa e se baseou em confissões arrancadas à base de tortura.

"Se você me perguntar se eles têm um plano ou a capacidade de manter essas pessoas na prisão, eu recomendaria que se olhasse para o tratamento que deram a simpatizantes do EI: no Curdistão não tem havido um processo judicial correto, e em Bagdá se viram violações flagrantes, como o uso de tortura e a condenação de 40 pessoas à morte em duas horas", disse Wilcke. "Acho que não está havendo muito planejamento em nível algum."

DILEMA

Sejam quais foram as deficiências das autoridades iraquianas, há mais problemas na Síria, onde os EUA estão trabalhando com milícias rebeldes conhecidas como as Forças Democráticas Sírias (SDF), mas não com o governo do ditador Bashar al-Assad.

"Levamos muito a sério a questão do tratamento dado a detentos e temos todas as razões para acreditar que as SDF farão o mesmo", disse Wilcke.

Mas, quando perguntado sobre qual seria o plano dos EUA para quaisquer membros de base do Estado Islâmico que possam ser capturados pelas Forças Democráticas Sírias, Wilcke disse que não há nenhum, observando que a coalizão liderada pelos EUA não faz qualquer supervisão direta de suas práticas de detenção.

"É um dilema, isso está claro", disse Raha Wala, da Human Rights First.

"Por um lado, as operações com detentos pós-11 de Setembro foram incrivelmente problemáticas no que diz respeito ao tratamento dado a eles e à sua posição legal. Por outro lado, não podemos simplesmente nos isentar de responsabilidade por isso e entregar as operações a parceiros locais que podem não se pautar pelos mesmos princípios que governos ocidentais respeitariam, em termos de adesão a normas de direitos humanos. Assim, estamos entre a cruz e a espada."

Tradução de CLARA ALLAIN


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