Folha de S. Paulo


Moradores de área inundada dos EUA se tornam 'refugiados climáticos'

A cada manhã, às 3h30, quando Joann Bourg deixa a casa mofada e enferrujada que seus pais construíram em um terreno que pertenceu ao seu avô, ela se preocupa com a possibilidade de que a ponte que une essa faixa de terra alagada à terra firme da Louisiana volte a ser encoberta pela água, forçando-a a perder mais um dia de trabalho.

Bourg, faxineira em uma loja de material esportivo no continente, vive com suas duas irmãs, sua mãe de 82 anos, um filho e uma sobrinha em terras nas quais seus ancestrais, membros de tribos indígenas do sudeste da Louisiana, ocuparam por gerações. Mas essas terras estão morrendo, se afogando em sal e afundando no mar, e ela está pronta a procurar outro lugar.

Com uma verba de "resiliência climática" concedida pela primeira vez para ajudar a reacomodar os moradores da ilha, Washington está pronta para ajudar.

"Sim, essa é a terra de nosso avô", disse Bourg, "Mas ela afundará, de um jeito ou de outro".

HERANÇA PERDIDA

Em janeiro, o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos anunciou verbas totais de US$ 1 bilhão em 13 Estados a fim de ajudar comunidades a se adaptarem à mudança no clima, com a construção de barragens mais fortes, represas e sistemas de drenagem.

Uma dessas verbas, de US$ 48 milhões [mais de R$ 160 milhões], destinada à Isle de Jean Charles, é novidade: a primeira alocação de dinheiro federal para transferir toda uma comunidade que enfrenta dificuldades para se acomodar ao impacto da mudança no clima. As divisões que esse esforço expôs e os dilemas logísticos e morais que ele apresentou apontam em microcosmo para os imensos problemas que o mundo pode enfrentar nas próximas décadas diante de uma nova categoria de pessoas deslocadas, conhecidas como "refugiados do clima".

"Vamos perder toda a nossa herança, toda a nossa cultura", lamentou o chefe Albert Naquin, da tribo biloxi-chitimacha-choctaw, à qual pertence a maioria dos moradores da ilha. "Tudo isso será história".

MUDANÇAS E PLANEJAMENTO

Em todo o mundo, os governos estão enfrentando a realidade de que, à medida que a mudança do clima causada pela atividade humana aquece o planeta, a alta no nível do mar, as tempestades mais fortes, as inundações mais frequentes, secas mais severas e a redução na disponibilidade de água fresca podem expulsar algumas das populações mais vulneráveis do mundo de suas casas. Entre 50 milhões e 200 milhões de pessoas - em sua maioria agricultores de subsistência e pescadores - podem perder suas terras até 2050 por conta da mudança do clima, de acordo com estimativas do Instituto de Segurança Humana e Ambiental das Nações Unidas e da Organização Internacional para as Migrações.

"As mudanças estão em curso, e são muito rápidas", alertou Sally Jewell, secretária do Interior dos Estados Unidos, em Ottawa, Canadá. "Teremos refugiados do clima".

Mas o problema é complexo, disse Walter Kaelin, presidente da Iniciativa Nansen, uma organização de pesquisa que colabora com as Nações Unidas para tratar dos problemas de deslocamento populacional causados pelo clima extremo.

"Não é bom esperar até que as pessoas tenham perdido suas casas, até que fujam e se tornem refugiadas", ele disse. "A ideia é planejar para o futuro e oferecer pelo menos certa dose de escolha às pessoas".

PROGRAMA NOVO

O plano de reacomodação dos moradores da Isle de Jean Charles é um dos primeiros programas de sua espécie no planeta, um teste de como responder à mudança do clima em circunstâncias muito dramáticas sem dissolver comunidades. Sob os termos da verba federal, os moradores da ilha devem ser reacomodados em terras mais secas, em uma comunidade que até o momento não existe. O dinheiro deve ser gasto inteiramente até 2022.

"Vemos o projeto como precedente para o resto do país, o resto do mundo", disse Marion McFadden, que comanda o programa no Departamento da Habitação e Desenvolvimento Urbano.

Mas mesmo um plano como esse - que resultaria na transferência de apenas 60 pessoas - vem sendo difícil de implementar. Três esforços anteriores de reacomodação, que remontam a 2002, fracassaram depois de encontrar dificuldades logísticas e políticas. O plano atual enfrenta os mesmos desafios, ilustrando as limitações da reacomodação em escala mais ampla.

ÁREA 90% INUNDADA

Por mais de um século, os indígenas norte-americanos da ilha pescaram, caçaram, capturaram animais com armadilhas e plantaram alimentos, em meio às luxuriantes bananeiras e nogueiras que no passado ocupavam áreas imensas. Mas de 1955 para cá, mais de 90% da massa terrestre original da ilha foi encoberta pelas águas. Canais criados por madeireiras e companhias de petróleo erodiram boa parte da ilha, e décadas de esforços de controle de inundações impediram que os rios, que antes fluíam livremente, substituíssem os sedimentos nas terras alagadas. Parte da ilha foi varrida por furacões.

O pouco que resta terminará inundado, à medida que a queima de combustíveis fósseis derrete as camadas de gelo polares e eleva o nível dos mares, de acordo com projeções da Avaliação Climática Nacional, um relatório de 13 agências federais norte-americanas que aponta a Isle de Jean Charles e seus moradores tribais como uma das áreas mais vulneráveis dos Estados Unidos.

As casas e trailers já mostram cicatrizes mofadas e enferrujadas das inundações cada vez mais frequentes e intensas. As árvores frutíferas se foram ou se ressecaram, graças à água salgada infiltrada na terra. Restam poucos animais a caçar.

Violet Handon Parfait não vê coisa alguma a não ser um futuro sombrio, na alta das águas. Ela vive com o marido e dois filhos em um pequeno trailer por trás dos destroços de sua casa, destruída pelo furacão Gustav em 2008.

As inundações estragaram o forno do trailer, e por isso a família agora cozinha em um fogareiro. A água também destruiu o computador da família, Parfait, que sofre de lúpus, tem medo do que acontecerá se adoecer e não conseguir chegar a um médico por conta de inundação na ponte.

Ela não concluiu o segundo o grau e tem esperanças de um futuro melhor, que incluiria educação universitária, para seus filhos, Heather, 15, e Reggie, 13. Mas as crianças muitas vezes perdem aulas quando inundações impedem o ônibus escolar de chegar à ilha.
"Só quero sair daqui", ela disse.

APEGO AO LAR

Ainda assim, muitos moradores da Isle de Jean Charles não querem sair. O apego à ilha é profundo. Pais e avós viveram aqui; há um cemitério na ilha que ninguém deseja abandonar. Uma desconfiança antiga e merecida quanto ao governo pende sobre todos os esforços, e uma disputa amarga entre duas tribos indígenas que têm membros na ilha bloqueou os esforços de união em torno de um plano.

"Ninguém com quem falo quer se mudar", disse Edison Dardar, 66, morador veterano da ilha que afixou cartazes manuscritos na entrada da ilha declarando que se recusa a partir. "Não sei quem está encarregado disso tudo".

Partir ou não é apenas a primeira de muitas questões difíceis: para onde transferir todo mundo? Que direito eles mantêm sobre o que deixarão para trás? Serão bem recebidos pelos novos vizinhos? Haverá empregos, onde eles forem viver? Quem poderá acompanhá-los?
"Não é uma simples questão de fazer um cheque e transferi-los alegremente a um lugar no qual os novos vizinhos os acolherão felizes", disse Mark Davis, diretor do Instituto Tulane de Lei e Política de Recursos Hídricos.

"Se transferir dezenas de pessoas já é difícil", ele prosseguiu, "se tornará impossível transferir milhares, ou centenas de milhares, delas de maneira justa e organizada. Se considerarmos as projeções quanto ao sul da Flórida, há a possibilidade de termos de transferir milhões de pessoas".

ELEVAÇÃO DO MAR

As autoridades da Louisiana vêm enfrentando alguns dos índices mais rápidos de perda de terras no planeta - uma área do tamanho do Estado do Delaware desapareceu, no sul da Louisiana, dos anos 30 para cá. Um plano mestre com custo projetado de dezenas de bilhões de dólares envolve uma muralha gigantesca de barragens e muralhas de proteção ao longo da costa.

Mas alguns lugares, como a ilha, seriam deixados de fora. Para essas comunidades, a transferência integral pode ser uma ferramenta efetiva, ainda que mais difícil e custosa.

"Essa é uma das coisas que precisamos aprender em termos de criar esse modelo, ou seja, como fazê-lo economicamente", disse Pat Forbes, diretor executivo do Serviço de Desenvolvimento Comunitário, a agência estadual encarregada de administrar as verbas federais relacionadas ao clima na Louisiana.

A vasta maioria do US$ 1 bilhão em verbas do programa de resiliência climática será destinada a projetos de melhora da infraestrutura, como estradas, pontes, represas, barragens e sistemas de drenagem mais fortes, a fim de que resistam à alta no nível do mar e a tempestades mais intensas.

Mas os especialistas consideram lugares como a Isle de Jean Charles causas perdidas.

"Estamos muito cientes da obrigação junto ao contribuinte de não desperdiçar dinheiro em situações incontornáveis", disse McFadden, do Departamento da Habitação e Desenvolvimento Urbano. "Poderíamos dar dinheiro para que a ilha se reconstruísse exatamente como no passado, mas os dados do clima nos dizem que ela continuará a ser atingida por tempestades e inundações cada vez piores, e o contribuinte continuará arcando com a conta".

Com visitas de casa em casa, o Estado está apenas começando a descobrir o que os moradores querem, em um novo plano, disse Forbes.
A localização da nova comunidade ainda não foi escolhida. Chefes das duas tribos presentes na ilha - os biloxi-chitimacha-choctaw e a United Houma Nation - debatem quem deveria ser autorizado a viver no local além dos ilhéus, e se alguns dos ilhéus não deveriam ser reacomodados em separado. Um dos planejadores envolvidos na reacomodação sugeriu uma área de isolamento entre a nova comunidade e a área em torno, para reduzir tensões. Naquin quer um búfalo vivo no local.

O que foi decidido, e isso é essencial para obter o apoio dos ilhéus, é que a transferência seja voluntária.

"Vivi a vida toda aqui e vou morrer aqui", disse Hilton Chaisson, que criou 10 filhos na ilha e deseja que seus 26 netos conheçam a mesma vida, de trabalhar a terra.

Ele admitiu que as inundações pioraram, mas, disse, "sempre descobrimos uma maneira de sobreviver".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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