Folha de S. Paulo


Brasil avaliou atuar na Armênia pós-matança em ação humanitária

O governo brasileiro, assim como o norte-americano, não reconhece o massacre da população armênia em 1915, que completou 101 anos em 24 de abril, como um genocídio.

Mas, no início do século 20, a existência de um Estado armênio e a situação de seus refugiados foi a primeira questão humanitária em que o Brasil tentou se envolver, segundo o pesquisador Heitor Loureiro, que defende na Unesp doutorado sobre o tema.

Loureiro diz que a causa foi instrumentalizada pelo país e que se levantou a hipótese de que o Brasil assumisse um mandato internacional na Armênia após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Seria uma ação de caráter humanitário "para angariar prestígio junto aos EUA e às potências europeias", afirma.

Ozan Kose/AFP
People lay red carnations on pictures of Armenian intellectuals, detained and deported in 1915, during a rally on April 24, 2016 to commemorate the 101th anniversary of the 1915 mass killing of Armenians in the Ottoman Empire at Istiklal avenue in Istanbul. Armenians say up to 1.5 million people were killed during World War I as the Ottoman Empire was falling apart, a claim supported by many other countries. Turkey fiercely rejects the genocide label, arguing that 300,000 to 500,000 Armenians and at least as many Turks died in civil strife when Armenians rose up against their Ottoman rulers and sided with invading Russian troops. / AFP PHOTO / OZAN KOSE ORG XMIT: 6228
Armênios colocam cravos em homenagem às vítimas do genocídio, ocorrido em 1915

Havia planos de que a questão armênia fosse solucionada por meio de um mandato na região, como o que foi feito no Oriente Médio. Os EUA recusaram o papel por voto do Congresso.

A comunidade armênia no Brasil pressionou as autoridades para que o país assumisse essa responsabilidade e reconhecesse a independência da República da Armênia proclamada em 1918.

"Isso não chegou a sair do papel, mas houve discussão nos bastidores do Ministério das Relações Exteriores e principalmente na imprensa", diz Loureiro à Folha.

Os planos não foram adiante, pois a Armênia se integrou ao bloco soviético em 1920, ao qual pertenceu até 1991.

Um dos protagonistas dessa história, segundo o pesquisador, foi o diplomata armênio Etienne Brasil. Loureiro baseia seus estudos em documentos e relatos da imprensa publicados à época.

Segundo ele, os boatos de um mandato brasileiro circularam no país e no exterior fomentados pelo diplomata.

Etienne e armênios radicados no Rio pressionavam as autoridades brasileiras "explorando a imagem de um povo cristão oprimido por muçulmanos", afirma Loureiro.

Durante a investigação, ele viajou à Armênia e encontrou correspondências de Etienne com políticos e intelectuais.

Há também registros de uma troca de mensagens entre o Brasil e a Liga das Nações sobre um possível auxílio brasileiro ao fim dos atritos entre turcos e armênios.

Em pesquisa na Turquia, Loureiro identificou o diplomata pelo sobrenome de batismo, Iknadossian."Ele usava uma vasta rede de contatos", diz. Etienne buscava influenciar políticos como Rui Barbosa e Epitácio Pessoa.

Apesar do histórico brasileiro, o pesquisador diz não ver interesse estratégico do país em reconhecer o genocídio armênio e, assim, assumir o que é diplomaticamente visto como um gesto contra a Turquia. Hoje, o país é um ator estratégico no Oriente Médio e membro da Otan (aliança militar do Ocidente).

O historiador uruguaio Vartan Matiossian, especialista na diáspora armênia na América do Sul, disse ter conhecimento dos rumores de que o Brasil pudesse assumir esse mandato. Ele diz, também, que se imaginava um papel similar à Argentina.

"Etienne fez um lobby extenso, particularmente no Brasil e na Argentina, sobre diversos assuntos que podiam beneficiar a incipiente República da Armênia", diz.

Richard Hovannisian, professor da Universidade da Califórnia, afirma por sua vez que o Brasil "foi um dos únicos países que responderam de maneira positiva" aos pedidos da Liga das Nações por auxílio na resolução do conflito entre turcos e armênios.

DEBATE

Um século após o massacre, armênios e turcos disputam ainda hoje os detalhes e circunstâncias do evento histórico. A Armênia afirma que 1,5 milhão de pessoas morreram durante esse genocídio.

A Turquia nega que tenha havido uma política deliberada para exterminar essa população. Segundo o governo turco, entre 300 mil e 400 mil teriam morrido no contexto da Primeira Guerra Mundial, quando armênios apoiaram os russos, inimigos do então Império Otomano.

Há também um debate internacional entre acadêmicos, apesar de a maior parte deles concordar que houve um plano turco para massacrar a população armênia.


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