"Não é como no cinema", diz Carolyn Loughton. "Ou você já morreu ou está se fazendo de morta. É um silêncio total, tirando a explosão da arma."
Loughton sobreviveu ao massacre de 1996 em Port Arthur, a pior tragédia da Austrália envolvendo armas de fogo. Mas sua filha de 15 anos foi uma das 35 pessoas mortas quando um atirador ensandecido disparou um fuzil semiautomático contra um café lotado.
O caso traumatizou o país e levou à adoção de algumas das leis de controle de armas mais rígidas do mundo. Na quinta-feira (28) os australianos lembram o vigésimo aniversário do massacre, em meio a uma discussão acirrada em casa e no exterior sobre a eficácia das medidas –e a possibilidade de servirem de exemplo para os Estados Unidos.
Semanas depois do massacre, o então primeiro-ministro John Howard conseguiu apoio parlamentar para a nova legislação. Foram proibidos os fuzis semiautomáticos, as escopetas e as espingardas, e as leis de licenciamento, registro e armazenagem de armas foram endurecidas. Um esquema de recompra de armas tirou de circulação um quinto das armas de fogo em mãos de particulares.
"Houve 13 massacres com armas de fogo antes de 1996 e nenhum desde então", diz Howard, que vê o controle de armas como uma de suas maiores realizações. "A Austrália tem segurança maior graças às leis. Quando há armas dando sopa, as pessoas as usam."
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Equipes de resgate durante buscas devido ao massacre em Port Arthur, na Austrália, em 1996 |
Desde o massacre houve uma queda nítida nos homicídios cometidos com armas de fogo: de 516 em 1996, passaram para apenas 230 em 2014. Os suicídios cometidos com armas de fogo também tiveram uma queda dramática, de 382 para 178 por ano no mesmo período.
Um estudo de 2010 da Universidade Nacional Australiana e da universidade Wilfred Laurier, no Canadá, estimou que a política de recompra de armas salvou estimadas 200 vidas por ano desde então. A maioria dessas pessoas teria morrido de suicídio.
O lobby australiano de armas diz que a queda representa a continuação de uma tendência que já estava presente antes do massacre. Para ele, há objeções filosóficas importantes às leis.
"Quando o governo tem todas as armas, as pessoas são súditas. Quando as pessoas possuem armas, elas são cidadãs", disse o senador David Leyonhjelm, entusiasta dos esportes com armas de fogo.
Mas a queda estatística no índice de mortes por armas de fogo vem atraindo a atenção de políticos, da mídia e dos defensores de controle de armas nos EUA, após uma grande onda de chacinas ocorridas na América nos últimos anos.
O presidente Barack Obama já elogiou várias vezes a resposta da Austrália a Port Arthur e a coragem demonstrada por Howard, político conservador, ao enfrentar o lobby australiano das armas. Durante a campanha, em outubro, a pré-candidata democrata favorita à nomeação para a disputa da Casa Branca, Hillary Clinton, considerou que um programa de recompra de armas, em estilo australiano, "merece ser estudado".
O banco de dados Gunpolicy.org, criado pela Universidade de Sydney, mostra que os EUA tem cinco vezes mais armas por pessoa que a Austrália. Os americanos têm chances 24 vezes maiores de morrer em um homicídio cometido com arma de fogo e oito vezes maiores de cometer suicídio com uma arma de fogo.
Rob Blakers/Reuters | ||
Port Arthur, que há 20 anos foi cenário de um massacre que matou 35 pessoas na Austrália |
"Para os australianos e a maioria das pessoas do mundo, as estatísticas americanas sobre mortes por armas de fogo são absolutamente incompreensíveis", diz Philip Alpers, professor universitário e diretor do site. "Mas é evidente que há grandes diferenças constitucionais e culturais entre os EUA e a Austrália, sem falar que o lobby das armas tornou-se um grupo tremendamente poderoso nos Estados Unidos."
A National Rifle Association americana ataca os políticos americanos que defendem a adoção de regras mais rígidas, divulgando vídeos avisando que uma política desse tipo levará à proibição de armas de fogo e ao confisco das armas de entusiastas.
O pré-candidato presidencial republicano Ted Cruz provocou polêmica em janeiro, quando disse que, após a reforma da legislação adotada pela Austrália em 1996, "o índice de agressões sexuais, o índice de estupros, subiu muito, porque as mulheres ficaram impossibilitadas de se defender".
Os dados australianos sobre agressões sexuais não revelam nenhum aumento ou queda evidente depois da recompra de armas, em 1996, ou de um esquema subsequente empreendido em 2003, apesar de ter havido uma tendência de aumento das agressões sexuais entre 1996 e 2008 (desde essa data, o índice vem caindo). Bill Shorten, líder do oposicionista Partido Trabalhista, escreveu a Cruz dizendo que suas declarações eram "ofensivas e incorretas".
Howard, que já defendeu as leis australianas de armas várias vezes na televisão americana, diz que não é otimista quanto à possibilidade de mudança nas leis de armas nos EUA, não obstante os massacres, "frequentes demais".
Apontando para o exemplo de seu país, ele diz que foi preciso coragem política; ele observou que seu vice-primeiro ministro, Tim Fischer, perdeu seu cargo na eleição que seguiu a reforma das leis de armas. O próprio John Howard usou colete à prova de balas quando apresentou um esboço das reformas propostas em um discurso para donos de armas enfurecidos.
Para Carolyn Loughton, a falta de controle de armas nos EUA é incompreensível. "Não quero comentar", ela disse à televisão australiana este mês. "Mas minha pergunta é: como estão indo as coisas com vocês aí?"
Tradução de CLARA ALLAIN