Folha de S. Paulo


Afetada pela tragédia de Tchernóbil, atleta mira nas Paraolimpíadas do Rio

Não havia bichinho de pelúcia para abraçar. A fome era constante, assim como a esperança de que uma mãe aparecesse para salvá-la.

Essas foram algumas das lembranças revividas pela atleta paraolímpica Oksana Masters quando retornou recentemente à Ucrânia, onde passou seus primeiros sete anos e meio de vida em três orfanatos diferentes.

A atleta visitou crianças órfãs que a olhavam fixamente como quem pergunta "você está aqui para me adotar?".

Duas décadas atrás, aquela expressão era a dela.

Desnutrida e com defeitos congênitos que seriam decorrentes do acidente com o reator nuclear de Tchernóbil, Masters foi adotada por uma americana.

Esta semana a tragédia de Tchernóbil completa 30 anos, e Oksana Masters vive uma realidade muito diferente.

Ela já foi medalhista paraolímpica três vezes no remo e esqui cross-country; hoje, sua meta é ser incluída na equipe de ciclismo que vai participar das Paraolimpíadas do Rio este ano. Ela apareceu na "Body Issue" da revista "ESPN The Magazine".

Mais que tudo, Oksana Masters tem mãe.

"Minha mãe literalmente salvou minha vida", disse a atleta de 26 anos recentemente, antes de um treino no Centro de Treinamento Olímpico dos EUA. "Sem ela, eu nunca teria saído do orfanato."

ENCONTRO

A jornada dela começou graças a uma foto em preto e branco que Gay Masters viu em um caderno ucraniano de adoções. A foto de Oksana com cerca de 5 anos cativou a fonoaudióloga, que na época lecionava em Buffalo, Nova York.

Oksana nasceu com uma membrana que unia seus dedos, sem polegares, com seis dedos em cada pé, pernas deformadas, um rim e apenas partes de um estômago.

Ela era perfeita para sua nova mãe. Mas sua adoção foi uma saga.

O governo ucraniano tinha imposto uma moratória às adoções por estrangeiros, e Gay Masters teve de esperar dois anos e meio até levá-la para casa. Ela enviava pacotes para Oksana sempre, contendo ursinhos de pelúcia e outros agrados.

A garotinha nunca recebeu os pacotes.

Ela simplesmente pensou que estivesse sozinha outra vez. Até que certo dia, às 23h30, com toda a papelada finalmente aprovada, Gay chegou para levar sua filha para casa.

"A agência de adoção me dizia o tempo todo: 'Você pode ir à Rússia e conseguir um bebê agora mesmo'", disse Gay em entrevista telefônica dada em sua casa em Louisville, Kentucky, para onde elas se mudaram quando Oksana era adolescente.

"Mas aquela era minha filha. Eu não podia abandoná-la."

Oksana pesava 16 quilos na época —um peso saudável para uma criança de 3 anos, mas não para alguém que tinha quase 8 anos de idade.

"Eu tinha amigas que não conseguiram sair do orfanato e acabaram morrendo", comentou. "Vi isso acontecer."

A nova mãe e sua filha não falavam a mesma língua, mas encontraram uma maneira de comunicar-se através de gestos e apontando para frases em um livro. Não demorou para elas se entenderem e começarem a curtir sua nova vida.

TCHERNÓBIL

Mais ou menos nessa época um dentista descobriu a causa original dos defeitos congênitos de Oksana. Ela não tinha esmalte nos dentes, devido à radiação.

Como era natural da região em volta de Tchernóbil, não foi difícil traçar a ligação com o pior acidente nuclear do mundo, ocorrido em 26 de abril de 1986.

Ela e sua mãe acreditam que a mãe biológica de Oksana ou viveu numa área contaminada ou teria ingerido alimentos contaminados pela radiação, levando Oksana a ser envenenada ainda no útero.

"Quando eu era criança, não pensava em Tchernóbil porque não sabia o que era. Depois de ficar mais velha e bem informada, acho estarrecedor saber como a tragédia ainda está afetando a região inteira", disse Oksana, que nasceu em Khmelnytskiy, no oeste da Ucrânia.

Ela nasceu com deficiência longitudinal congênita da tíbia, razão pela qual suas duas pernas tinham comprimentos diferentes.

Quando era criança, conseguia movimentar-se com passinhos minúsculos porque seus dois tornozelos estavam fundidos, mas seu corpo não conseguia mais suportar seu peso.

Sua perna esquerda foi amputada perto do joelho quando ela tinha 9 anos, e a perna direita, no mesmo lugar, cinco anos mais tarde.

Mais ou menos nessa época, Oksana descobriu o remo. Puxar os remos e empurrá-los contra a água tornou-se uma maneira de pôr seu sofrimento para fora, de "me curar do meu passado", disse. Ela ganhou habilidade no remo em pouquíssimo tempo.

PROVAS

Antes das Paraolimpíadas de 2012 em Londres, Gay lhe deu uma réplica de medalha olímpica que tinha sido de seus próprios pais. Durante as provas de remo, Oksana prendia a réplica em seu barco, para lhe dar boa sorte.

Ela e seu companheiro de remo, Rob Jones, que perdeu as duas pernas numa explosão de bomba improvisada no Afeganistão quando era fuzileiro naval americano, acabaram recebendo a medalha de bronze.

"Eu repetia: 'É verdade, é verdade mesmo?'", Gay recordou. "Foi tão estarrecedor, é indescritível."

Dois anos depois, em Sochi, nas Paraolimpíadas de Inverno, Oksana ganhou as medalhas de prata e bronze no esqui cross-country.

Agora ela está encarando um desafio novo. Ela é uma candidata forte para inclusão na equipe americana de ciclismo paraolímpico. Em julho, em Charlotte, Carolina do Norte, Oksana terá sua oportunidade final de qualificar-se para participar da equipe.

"Penso no Rio", ela disse. "Quero ir para lá. Mas não quero ficar animada demais."

É um mecanismo para enfrentar decepções possíveis, algo que vem de seus tempos de orfanato. Sempre que um visitante chegava, os responsáveis a arrumavam em um vestido e punham um lacinho em seus cabelos.

"Todas as crianças olhavam para a próxima pessoa a entrar, como quem diz 'você vai ser minha nova mamãe? É isso o que todo mundo quer'", disse Oksana.

Tchernóbil

Voltar à Ucrânia em outubro foi profundamente emocionante —e terapêutico. Oksana conversou com soldados feridos no conflito no leste da Ucrânia e passou tempo com crianças em um orfanato.

"Muitas vezes eu olho para trás e penso: 'Mal acredito que minha vida hoje é como é'", disse.

Tradução de Clara Allain


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