Folha de S. Paulo


Abrigos de vítimas de abuso passam a aceitar animais de estimação nos EUA

A Sra. H. decidiu que tinha de sair do apartamento de sua mãe no segundo trimestre do ano passado, depois que sua irmã, viciada em drogas, empunhou uma faca contra sua garganta e ameaçou matá-la.

Ela fez as malas, apanhou o filho de seis anos de idade e ligou para uma linha de assistência a vítimas de violência doméstica.

Quando a atendente perguntou se ela tinha um lugar seguro onde deixar sua gata, a sra. H travou.

"Minha mãe ficava repetindo que, se eu dissesse que queria levar a gata comigo, eles recusariam", contou a sra. H.

Nicole Bengiveno/The New York Time
A senhora H e sua gata em uma unidade de abrigo na Urban Resource Institute, no Brooklyn
A senhora H e sua gata em uma unidade de abrigo na Urban Resource Institute, no Brooklyn

REFÉNS

Até muito recentemente, as vítimas de abusos que fossem também proprietárias de animais de estimação tinham invariavelmente de escolher entre sair sem levar os animais ou continuar vivendo com os perpetradores de abusos, porque nenhum abrigo para vítimas de violência admitia animais.

É uma situação que pode se provar desastrosa: os responsáveis por abusos usam os animais de estimação para manipular suas vítimas.

Em 2014, uma mulher de Queens foi sufocada e morta a chutes pelo namorado, depois de voltar para casa a fim de proteger seu cachorro.

Em janeiro, um homem de Queens foi acusado de matar o cachorro da namorada depois de ela informá-lo de que o deixaria.

Mais de dois terços das mulheres agredidas entrevistadas em uma pesquisa revelaram que os agressores haviam machucado ou ameaçado seus animais de estimação.

Mas existe uma compreensão crescente da maneira pela qual os animais de estimação podem se tornar parte do ciclo de violência doméstica.

'MEMBROS DA FAMÍLIA'

Hoje existem cerca de duas dúzias de abrigos nos EUA que permitem que seus moradores mantenham animais de estimação, dizem ativistas, e cerca de cem outros que oferecem canis no local —o que representa ainda assim apenas uma pequena fração do total de abrigos.

Em 2013, uma organização sem fins lucrativos chamada Urban Resource Institute (URI) abriu o primeiro abrigo na cidade de Nova York que permite que vítimas de violência doméstica vivam com seus animais.

"Os animais são membros da família, e ninguém, especialmente não uma vítima de violência doméstica, deveria ter de tomar a impossível decisão de deixar para trás os seus animais de estimação, em um momento de crise", disse Nathaniel Fields, o presidente da organização.

Mas o instituto só tem 27 apartamentos em seu programa, chamado Pessoas e Animais Vivendo em Segurança, ou Uripals, na sigla em inglês.

Esses apartamentos são as únicas habitações que aceitam animais em um sistema municipal de abrigos contra a violência doméstica que atende a cerca de 9.000 pessoas por ano.

AMEAÇAS

Quando a sra. H. (a identificação que ela e os dirigentes do abrigo pediram que fosse usada para proteger sua identidade, porque ela é vítima de violência doméstica) e seu filho se mudaram para o abrigo do URI no Brooklyn, em maio, não havia vagas para animais de estimação.

Por isso a gata ficou no apartamento da mãe dela em Manhattan, onde a sra. H havia buscado refúgio contra um namorado violento.

A situação não era boa. A irmã da sra. H., proprietária original da gata, havia deixado de cuidar do animal há muito tempo.

A gata havia se transformado de animal dócil em reclusa irritadiça e passava a maior parte do tempo escondida, atacando a unhadas as pessoas que se aproximavam.

Nicole Bengiveno/The New York Time
Na unidade de abrigo há um quintal onde as pessoas podem brincar com seus animais
Na unidade de abrigo há um quintal onde as pessoas podem brincar com seus animais

Depois que a sra. H. saiu do apartamento, as coisas pioraram. A irmã ameaçou a mãe com uma faca e ficou algum tempo presa. A mãe fugiu para a República Dominicana. Outra das irmãs ia ao apartamento uma vez por dia para dar comida à gata.

E então a sra. H. recebeu um telefonema de um homem a quem a irmã aparentemente devia dinheiro.

"Ele disse que ainda que não me vissem muito por lá, sabiam como me machucar. Disseram que, se eu não deixasse minha irmã voltar para eles, me fariam pagar", contou. "Pensei que eles estavam ameaçando invadir o apartamento e matar minha gata."

Dois dias depois, a sra. H., uma mulher efusiva na casa dos 30 anos, que trabalhava como coordenadora para uma companhia de benefícios de saúde, foi ver como estava a gata (a quem ela se referiu na entrevista pelo nome "Midnight".).

O apartamento estava trancado com um cadeado. Ela foi à polícia para que eles abrissem a porta. O lugar havia sido depredado. Os móveis estavam jogados para todo lado. Portas haviam sido arrombadas.

"Eu fiquei chamando —Midnight! Midnight!— e nada", contou a sra. H.

Ela ficou devastada. Mas três dias mais tarde, encontrou a gata no abrigo municipal de animais do East Harlem. "Eu estava indo embora e ouvi um miado. Ela tinha me ouvido!"

VIDA NOVA

Depois de ficar hospedada no abrigo Mayor's Alliance for NYC's Animals, a gata pôde enfim se unir à sra. H e seu filho em julho, em uma espaçosa e ensolarada suíte no mesmo abrigo do URI, por trás de uma porta que diz "animais de estimação admitidos neste apartamento".

Em um ambiente seguro e estável, não só a sra. H. conseguiu vida nova como a gata também.

Na metade do ano passado, o pai da sra. H. morreu, e ela ficou surpresa ao perceber que a gata preta e esguia, que vinha mantendo distância, estava se aproximando para consolá-la.

"Quando me deitei no sofá, ela veio e repousou a cabeça sobre a minha coxa", disse a sra. H. "Ela me olhou como se estivesse dizendo que tudo ia ficar bem. A gata estava tomando conta de mim."

Certa tarde do mês passado, a sra. H. me recebeu para uma visita ao seu apartamento. "Nenê", ela chamou ao entrar, "mamãe chegou".

A gata estava enrodilhada na cama, e a sra. H. a pegou no colo. "Ela é tão doce", disse. A gata se aproximou dela para comer petiscos em sua mão.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: