Folha de S. Paulo


Mentor em Bruxelas ensinava o "islã bandido" a jovens revoltados

Ele vivia em um pequeno apartamento de sótão no bairro de Molenbeek, em Bruxelas, e ficou conhecido entre alguns de seus seguidos como o Papai Noel da jihad.

Tinha barriga grande e barba farta e distribuía dinheiro e conselhos a jovens muçulmanos interessados em combater na Síria e Somália ou em espalhar o caos na Europa.

Yves Herman/Reuters
Belgian police stage a raid, in search of suspected muslim fundamentalists linked to the deadly attacks in Paris, in the Brussels suburb of Molenbeek, November 16. 2015. REUTERS/Yves Herman ORG XMIT: MAL266
Ação da polícia belga no bairro Molenbeek, em novembro, após os ataques em Paris

Em 2014, quando apreendeu o computador do homem em questão, Khalid Zerkani, a polícia belga encontrou grande quantidade de material extremista, incluindo folhetos intitulados "Trinta e oito maneiras de participar da jihad" e "Dezesseis objetos indispensáveis a adquirir antes de partir para a Síria".

Em julho, juízes belgas o sentenciaram a 12 anos de prisão por participação nas atividades de uma organização terrorista. Declararam que Zerkani é "o arquétipo de um mentor subversivo", alguém que difundia "ideias extremistas entre jovens ingênuos, fragilizados e agitados".

Somente desde então é que ficou clara toda a escala do trabalho diligente feito por Zerkani nas ruas de Molenbeek e mais além, na medida em que a rede que ele ajudou a formar emergiu como elemento central nos ataques em Paris e Bruxelas, além de um ataque na França que as autoridades francesas disseram ter impedido no mês passado.

"Zerkani perverteu uma geração inteira de jovens, especialmente no bairro de Molenbeek", disse em fevereiro o procurador belga Bernard Michel.

Em seu julgamento, Zerkani, 42 anos, negou qualquer envolvimento em terrorismo. Seu advogado em Bruxelas, Steve Lambert, se negou a dar declarações para este artigo.

PARIS E BRUXELAS

Mas documentos do tribunal e entrevistas com moradores de Molenbeek e ativistas, além de autoridades de segurança belgas, sugerem que ele tenha tido vínculos diretos ou indiretos com várias figuras cruciais hoje mortas ou detidas em conexão com o massacre de novembro em Paris que deixou 130 mortos e as explosões que mataram 32 pessoas em Bruxelas no mês passado.

Tome-se o caso de Mohamed Abrini, ex-morador de Molenbeek que, segundo disseram as autoridades belgas no sábado, confessou ser o "homem de chapéu" filmado por câmeras de vigilância acompanhando os homens-bomba no aeroporto de Bruxelas e mais tarde afastando-se do local.

Seu irmão mais jovem, Souleymane, foi à Síria com a ajuda de Zerkani, segundo autoridades de segurança que exigiram anonimato para falar porque não estavam autorizadas a dar declarações. O irmão teria morrido na Síria em 2014, combatendo nas fileiras do Estado Islâmico.

Reda Kriket, outro veterano do conflito na Síria que foi detido na França no mês passado por vínculos com o ataque frustrado, ficou no apartamento de Zerkani por algum tempo e lhe emprestou sua Mercedes, licenciada na França, segundo promotores.

Investigadores belgas dizem que Abdelhamid Abaaoud, morador de Molenbeek que comandou os ataques de novembro em Paris, era discípulo de Khalid Zerkani. Najim Laachraoui, suspeito pelas autoridades de ter fabricado as bombas usadas nos ataques de Paris e Bruxelas, também teria tido ligações com a rede.

AFP
A picture released on March 22, 2016 by the belgian federal police on demand of the Federal prosecutor shows a screengrab of the airport CCTV camera showing three suspects of this morning's attacks at Brussels Airport, in Zaventem. Two explosions in the departure hall of Brussels Airport this morning took the lives of 14 people, 81 got injured. Government sources speak of a terrorist attack. The terrorist threat level has been heightened to four across the country. / AFP PHOTO / BELGIAN FEDERAL POLICE / - / RESTRICTED TO EDITORIAL USE - MANDATORY CREDIT
Pouco antes dos ataques ao aeroporto de Bruxelas, foto mostra Najim (esq.) e Abrini (de chapéu)

A imigrante maliana Hawa Keita, que vive em Bruxelas, disse que seu filho, Yoni Mayne, foi radicalizado em questão de meses sob a influência de Zerkani. Ela acredita que seu filho tenha morrido em combate na Síria em 2014.

"Ele é um feiticeiro", ela falou em entrevista concedida em seu apartamento em Bruxelas, falando de Zerkani. "É Satanás."

DA RELIGIÃO AO CRIME

O papel exercido em Molenbeek por Zerkani, homem carrancudo e mais versado nos modos das ruas que nas da mesquita, ajuda a explicar por que um distrito pequeno e não especialmente pobre da capital belga reaparece a todo momento em investigações sobre terrorismo.

E também destaca uma mudança pronunciada percebida nos últimos dez anos, uma passagem das discussões teológicas muitas vezes obscuras de uma geração anterior de jihadistas ligados à Al Qaeda para algo que Hind Fraihi, que escreveu um livro sobre Molenbeek, batizou de "gangster Islam", ou islã bandido.

Belga de origem marroquina, Fraihi disse que quando primeiro começou a fazer pesquisas em Molenbeek, mais de uma década atrás, o cenário radical era dominado por clérigos extremistas bem versados nos textos religiosos.

Sob a influência da propaganda do Estado Islâmico, segundo ela, isso se converteu em um empreendimento criminal movido "pela sinergia entre o banditismo e o islã".

O Estado Islâmico busca recrutas "entre bandidos e criminosos porque precisa deles, graças ao conhecimento que têm de armas, refúgios e o cenário underground", disse Fraihi. "Quando isso tudo é misturado com um pouco de islã, o resultado é o que se encontra em Molenbeek."

Alguns pesquisadores identificam as raízes do radicalismo em Molenbeek na década de 1990, quando o franco-sírio Bassam Ayachi, dono de um restaurante, fundou o Centro Islâmico Belga, uma mesquita improvisada que promovia a vertente dogmática salafista do islã. Moradores do bairro e alguns funcionários municipais avisaram as autoridades em várias ocasiões que o centro abrigava extremistas.

Philippe Moureaux, que foi prefeito de Molenbeek entre 1993 e 2012, disse que quando conheceu Ayachi, "ficou claro que ele era extremista", mas que considerou isso da alçada do serviço federal de segurança belga, não de autoridades municipais como ele próprio.

O antropólogo Johan Leman, funcionário comunitário em Molenbeek, disse que soou o alarme em relação às atividades do centro, mas não teve resposta —mesmo depois de vir à tona que Ayachi tinha oficiado o casamento de um militante da Al Qaeda que participara do assassinato de Ahmad Shah Massoud, comandante de guerra afegão que se opunha a Osama bin Laden, em setembro de 2001.

Leman, que trabalhava para a comissão governamental de combate à discriminação, moveu uma ação judicial acusando o Centro Islâmico de promover posições antissemitas e antiamericanas. Ele disse que em 2006 o tribunal decidiu que o centro tinha praticado discurso de ódio. Mais ou menos na mesma época, a polícia belga invadiu o apartamento de Ayachi e apreendeu computadores e documentos.

Ayachi acabou mudando-se para a Síria com seu filho, que morreu mais tarde em combate contra as forças do governo. Ayachi não respondeu a um pedido de entrevista.

ZERKANI

Marroquino que tornou-se residente da Bélgica em 2002, Zerkani se movimentava nas margens do círculo de Ayachi, mas não atraía muita atenção, segundo pessoas de seu bairro.

Enquanto o Centro Islâmico defendia uma forma ascética e rígida de islamismo que agradava pouco a jovens que gostavam de beber álcool e fazer farra à noite, Zerkani, disseram investigadores belgas, conseguiu lançar uma ponte sobre a divisão, canalizando as energias criminosas de jovens infratores.

Entre esses recrutas de Zerkani, segundo os investigadores, estavam Abaaoud, que foi morto alguns dias depois dos ataques de Paris, quando a polícia francesa invadiu seu esconderijo, e Salah Abdeslam, ex-traficante de drogas e dono de bar, suspeito de ser um dos arquitetos dos ataques em Paris e que foi capturado em Molenbeek no mês passado depois de passar quatro meses fugindo da polícia.

Zerkani nasceu em Zenata, uma região do norte do Marrocos habitada pela minoria bérbere do país, frequentemente rebelde; passou um tempo na Espanha e Holanda antes de mudar-se para a Bélgica quando tinha 28 anos.

Em Bruxelas, as pessoas que o cercavam incluíam partidários do Shabab, grupo militante somali filiado à Al Qaeda. Investigadores belgas disseram que Zerkani furtou de lojas e cometeu outros delitos leves antes de tornar-se prolífico recrutador para o Estado Islâmico.

Um investigador belga sênior de terrorismo, exigindo anonimato para falar porque não tem autorização para isso, disse que não está claro como Zerkani se tornou agente de confiança do Estado Islâmico e seus predecessores e que a extensão de seu envolvimento com pessoas ligadas a complôs só está vindo à tona agora.

Uma teoria é que Zerkani teria sido recomendado à liderança do grupo militante na Síria por Fatima Aberkan, amiga da esposa do militante da Al Qaeda que matou Massoud, o comandante afegão. No julgamento de 2015 que destacou Zerkani, um tribunal belga sentenciou Aberkan a cinco anos de prisão por participação em uma organização terrorista. Os promotores disseram que ela e cinco de seus filhos já passaram tempo na Síria com o Estado Islâmico.

Não há registros que comprovem que Zerkani tenha viajado à Síria. Mas promotores disseram que pelo menos 18 pessoas com quem ele mantinha contato regular foram à Síria combater entre meados de 2012 e 2014.

ROUBO PERMITIDO

As autoridades de segurança belgas e pessoas que conhecem Zerkani disseram que ele afirmava aos jovens delinquentes de Molenbeek que condenações criminais passadas não constituíam obstáculo à causa islâmica, e sim um alicerce fundamental.

De acordo com o sumário do veredito anunciado pelos juízes, testemunhas no julgamento de Zerkani disseram que ele pregava que "roubar dos infiéis é permitido por Alá" e era necessário para financiar viagens às "zonas da jihad".

Zerkani foi preso levando 4.397 euros e US$1.235, além de dinheiro de Cingapura, Marrocos e seis outros países. A polícia também aprrendeu passaportes roubados e encontrou muitos celulares, computadores e um aparelho para silenciar alarmes antifurto em lojas.

Zerkani tinha acumulado uma conta telefônica grande, tendo feito 47 ligações para contatos do Estado Islâmico na Síria e 89 para outros contatos na Síria ao longo de apenas dez dias, em dezembro de 2013.

Os investigadores consideraram tudo isso incompatível com o fato de que Zerkani não tinha emprego conhecido desde 2008, mas durante anos tinha dado dinheiro a combatentes voluntários.

Zerkani disse às autoridades que trabalhava no mercado negro, fazendo escambo de "vários objetos". Mas as equipes de vigilância informaram que nunca o viram vendendo nada.

Promotores belgas disseram em relatório que, para conseguir a adesão de homens jovens e insatisfeitos, Zerkani "promoveu a ruptura sucessiva deles com suas raízes anteriores e seus laços de família, escolares e sociais na Bélgica". Eram, em sua maioria, homens 15 a 20 anos mais jovens que ele e que compartilhavam sua origem marroquina.

Recrutadores como Zerkani, disse Bachir M'Rabet, orientador de jovens em Molenbeek, "atraem pessoas do norte da África porque sabem como funciona a cabeça delas. Não procuram atrair turcos ou albaneses, porque não têm proximidade cultural com eles."

Mohamed Karim Haddad, irmão de um "convertido" que partiu para a Síria, descreveu Zerkani como "charlatão que, em nome de uma causa nefasta, levou jovens e homens adultos socialmente instáveis para o mau caminho".

O filho de Keita, que teria 25 anos hoje se tivesse sobrevivido, foi condenado em Bruxelas em 2013 por envolvimento em drogas. Mas sua mãe disse que foi apenas depois de começar a frequentar Molenbeek que ele mostrou qualquer interesse pela Síria e que começou a criticá-la por não ser suficientemente devota.

Zerkani não apresentava a esses recrutas argumentos teológicos obscuros para justificar a violência, como tinha feito Ayachi, do Centro Islâmico. Em vez disso, utilizava algumas poucas ideias religiosas toscas para conferir legimidade a um caminho criminoso que eles já tinham escolhido.

Muito antes de a jihad ficar em voga nas margens da sociedade, a criminalidade já era endêmica em partes de Molenbeek. Muitos moradores atribuem a culpa por essa decadência a Moureaux, o ex-prefeito que venceu eleições sucessivas.

Moureaux provocou indignação em 2010, quando, ao lado do prefeito da região de Bruxelas, tratou um ataque armado a policiais lançado por um belga de origem marroquina com fuzil Kalashnikov como simples "fait divers", ou seja, uma notícia que chama a atenção mas não tem importância maior.

Sentenciado a dez anos de prisão mas libertado após quatro, o atirador era Ibrahim Bakraoui, um dos dois irmãos que, segundo as autoridades, lançaram os ataques suicidas de 22 de março em Bruxelas.

Tradução de Clara Allain


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