Folha de S. Paulo


Como o Boko Haram transforma mulheres capturadas em terroristas

"Prenda a bomba sob sua axila para que fique firme", foi ensinado às meninas e mulheres. "Corte a cabeça do inimigo por trás, para ele não se debater tanto." "Se você corta pela nuca, eles morrem mais rápido", disse Rahia Amos, uma avó nigeriana, descrevendo as instruções meticulosas que recebeu do Boko Haram para tornar-se mulher-bomba.

De todos os muitos horrores do avanço destruidor do Boko Haram pela África ocidental – os ataques a mesquitas, igrejas e escolas; os massacres de civis; os vilarejos inteiros reduzidos a cinzas após a passagem dos terroristas –, um dos que causa mais perplexidade vem sendo a capacidade do grupo de converter mulheres e meninas capturadas em assassinas.

Tyler Hicks/The New York Times
Rahila Amos, que foi sequestrada pelo Boko Haram e forçada a ter aulas de como realizar atentados
Rahila Amos, que foi sequestrada pelo Boko Haram e forçada a ter aulas de como realizar atentados

O Boko Haram, um dos grupos extremistas mais mortíferos do mundo, já usou pelo menos 105 meninas e mulheres em ataques suicidas desde junho de 2014, quando uma mulher detonou uma bomba em um quartel do Exército na Nigéria. A informação é do "The Long War Journal", que rastreia a atividade terrorista.

Desde então, mulheres e meninas, muitas vezes levando bombas escondidas em cestos ou sob suas roupas, já mataram centenas de pessoas em ataques a feiras e mercados de peixes e verduras, escolas, um cais de rio e até em acampamentos de pessoas que abandonaram suas casas para escapar da violência.

"Não é alguma coisa que se possa derrotar ou erradicar imediatamente", comentou Issa Tchiroma Bakary, ministro das Comunicações dos Camarões, onde 22 mulheres-bomba foram identificadas desde o início deste ano. "Não se sabe quem é quem. Quando você vê uma moça se aproximando, não sabe se ela está escondendo uma bomba".

Os soldados não podem abrir fogo contra todas as mulheres que lhes pareçam suspeitas, ele explicou. "O Boko Haram sabe que temos um calcanhar de Aquiles."

A violência do grupo extremista contra mulheres chocou o mundo inicialmente dois anos atrás, quando o grupo invadiu uma escola na Nigéria e fugiu levando cerca de 300 meninas, muitas das quais nunca foram encontradas. Centenas de outras meninas e mulheres já foram sequestradas, violentadas e, em alguns casos, engravidadas intencionalmente, possivelmente com o objetivo de criar uma nova geração de combatentes.

Rahia Amos, 47, disse que os terroristas chegaram ao vilarejo dela pela manhã, dando tiros enquanto saíam de seus veículos e capturavam mulheres e crianças. Pouco depois, Amos, que é cristã, foi forçada a se matricular nas aulas de islamismo do Boko Haram, o primeiro passo em seu caminho para aprender a arte de lançar ataques suicidas.

Ela contou que, depois de meses de treinamento, ela finalmente conseguiu fugir de seus captores um dia quando eles estavam reunidos para a pregação do fim da tarde. Ela ficou para trás, acompanhada por dois de seus filhos pequenos e um neto, e juntos fugiram até a fronteira dos Camarões.

"Não quero levar uma bomba", ela falou no campo de refugiados camaronense, que se estende por uma paisagem imensa pontilhada de barracas e choupanas de barro.

As autoridades dos Camarões e da Nigéria disseram que muitas das experiências detalhadas por Amos correspondem aos relatos feitos por outras mulheres que escaparam do Boko Haram ou foram detidas antes de conseguir detonar suas bombas. As descrições feitas por ela também guardam grande semelhança com detalhes dados por outras mulheres e meninas libertadas, incluindo as descrições dos rituais funerários realizados antes de as mulheres-bomba serem enviadas em suas missões.

Os relatos dão uma ideia de como o Boko Haram, apesar de estar sob pressão militar da campanha multinacional lançada para acabar com ele, vem conseguindo disseminar o terror por um campo de batalha extenso que hoje abrange a Nigéria, Chade, Camarões e Níger.

Sem conseguir exercer o mesmo controle territorial estreito que antes, o grupo está enviando mulheres e meninas jovens para atuar como terroristas recém-formadas, capazes de provocar perdas devastadores.
O coronel Didier Badjeck, porta-voz da Defesa camaronense, disse que quando soldados expulsaram o Boko Haram de alguns vilarejos nas últimas semanas, encontraram casas que estavam sendo usadas como prisões de mulheres e meninas. As reféns teriam relatado que receberam treinamento durante o cativeiro, estudando o Alcorão e sendo treinadas para cometerem violência.

"O Boko Haram está treinando-as para maximizar o número de vítimas", disse o coronel Badjeck. "Temos certeza disso."

O grupo geralmente envia combatentes homens para atacar mesquitas. No mês passado, porém, uma mulher vestida de homem detonou explosivos presos a seu corpo durante as orações matinais em um vilarejo no nordeste da Nigéria. Outra mulher estava esperando do lado de fora da mesquita, e, quando os fiéis fugiram da primeira explosão, ela detonou seus próprios explosivos também. Pelo menos 24 pessoas foram mortas.
Os ataques suicidas lançados por mulheres já se tornaram tão comuns que até mesmo entidades humanitárias estão repensando a maneira como distribuem alimentos, água e outros tipos de assistência às mulheres. E se uma delas estiver escondendo uma bomba?

Muitos dos ataques recentes nos Camarões foram lançados por adolescentes de 13 ou 14 anos, levando analistas e autoridades a questionar se as meninas sequer tinham consciência de estarem carregando bombas. Em ataques recentes na Nigéria, porém, algumas das mulheres-bomba usavam os cabelos amarrados para trás, num penteado reservado para ritos funerários – um sinal de que estavam prontas para morrer.

Mas algumas fendas estão começando a aparecer no sistema de treinamento de terroristas do Boko Haram. Em fevereiro, uma menina enviada para atacar um vilarejo na região do extremo norte de Camarões jogou seus explosivos ao chão e, em vez de detoná-los, correu para as autoridades. As informações que ela forneceu levaram a um grande ataque aos combatentes do grupo.

No nordeste da Nigéria, em fevereiro, três meninas com bombas foram enviadas a um campo para nigerianos que tinham fugido do Boko Haram. Duas delas detonaram suas bombas, matando quase 60 pessoas. Mas a terceira viu seus pais entre as pessoas desesperadas no campo. Sem coragem de seguir adiante, ela jogou seus explosivos no mato.

Segundo informações recentes de grupos humanitários, desde 2012 o Boko Haram, que no ano passado jurou lealdade ao Estado Islâmico, já sequestrou até 2 mil mulheres e crianças, meninos e meninas. Meninos também são usados como homens-bomba.

As mulheres-bombas representam armas ideais, sob muitos aspectos. Nos postos de controle comandados por homens elas são revistadas com menos cuidado (isso quando o são). É fácil ocultar explosivos sob as dobras de seus vestidos ou vestes religiosas.

O uso de mulheres-bomba é característico de grupos extremistas há décadas. No conflito da Tchetchênia, elas eram conhecidas como viúvas negras. No Sri Lanka, combateram com os Tigres Tâmeis. Em seu livro "Bombshell: Women and Terrorism", Mia Bloom estima que um quarto de todos os ataques suicidas entre 1985 e 2008 foram cometidos por mulheres.

Um soldado que enfrentou o grupo terrrorista disse acreditar que os combatentes devem colocar drogas na comida das mulheres. Outros que monitoram a organização levantam a possibilidade de as bombas serem detonadas à distância.

De acordo com Amos, o uso de mulheres como armas pelo Boko Haram é uma estratégia cuidadosamente pensada e que é aceita por algumas das mulheres. Ela disse que, das cerca de 30 prisioneiras que seguiram o treinamento com ela, sete meninas estavam entusiasmadas com a ideia de lançar missões suicidas.

"São um caminho direto para o paraíso", teria sido dito ao grupo.

Amos, que hoje é uma das 58 mil residentes do campo de refugiados de Minawao, descreveu um sistema de doutrinação de potenciais mulheres-bomba que envolve a privação de alimentos e promessas de vida eterna. São táticas que o Boko Haram emprega há décadas.

Quando a facção invadiu a cidade dela, em 2014, seus dois irmãos foram mortos a tiros. Seu marido conseguiu fugir com cinco dos filhos do casal, mas Amos não conseguiu escapar, nem tampouco seus dois outros filhos pequenos e um neto. O Boko Haram os prendeu juntamente com outras mulheres e crianças, colocando todos em uma valeta comprida.

Elas foram mantidas ali por dias, comendo uma refeição diária feita de milho em pó. Finalmente um combatente chegou e fez uma pergunta fatídica: "Vocês querem seguir a Cristo ou ser muçulmanas?"
Todas as mulheres concordaram em se converterem ao islã, temendo ser mortas se não o fizessem. Então, o treinamento começou.

Amos descreveu um sistema diário de ensino para as mulheres que era dividido em seis níveis, que ela chamou de "Primário Um", "Primário Dois" etc. Os dois primeiros níveis eram de ensino corânico. O Primário Três era o treinamento em atentados suicidas e decapitações. "Como matar uma pessoa e como destruir uma casa com uma bomba", disse Amos.

"Se encontrássemos um grupo de dez a 20 pessoas, era para apertarmos isto daqui", ela disse, aludindo-se a um detonador.

O ensino dado nos níveis superiores do treinamento – Primários Quatro, Cinco e Seis – era um segredo limitado aos combatentes. Amos nunca chegou a saber o que acontecia nesses níveis.

Ela teve sorte. Os combatentes do Boko Haram decidiram não "casá-la", eufemismo usado para descrever os estupros que o grupo comete, porque ela já tinha marido e filhos. Ela contou 14 mulheres e quatro meninas em suas aulas de formação para terrorismo que não tiveram a mesma sorte.

Durante os meses que passou em cativeiro, ela recebeu apenas uma refeição diária e perdeu peso, fato confirmado por seu sobrinho que vive no campo de Minawao. Ele olhou para a figura magra de Amos e disse: "Antigamente ela era gorda".

Ela explicou que o Boko Haram incorpora a pouca comida ao treinamento. Vários meses atrás, combatentes reuniram as mulheres e as levaram a uma fábrica desativada para verem um grupo de meninas gordinhas e bem alimentadas, para as quais não faltavam comida e água. "Sigam nosso caminho e vocês terão o suficiente para comer, como estas moças", eles disseram.

As meninas, algumas delas em prantos, disseram a Amos que eram de Chibok, o povoado nigeriano onde o Boko Haram sequestrou as estudantes. O Departamento de Estado e autoridades militares americanas disseram que vão investigar as declarações de Amos sobre as meninas.

"Elas eram muito gordas e ganhavam muita água", disse Amos, comparadas com ela própria e outras mulheres mantidas em cativeiro.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: