Folha de S. Paulo


Com sigilo sobre reformas em Cuba, partido castrista sofre críticas internas

Dias após a visita histórica do presidente Barack Obama, os líderes do Partido Comunista de Cuba sofreram críticas incomuns de suas próprias bases por conta da imposição de novos níveis de sigilo sobre o futuro das reformas sociais e econômicas.

Depois de meses de descontentamento latente, as queixas entre os membros do partido ficaram tão fortes que o jornal oficial, o Granma, fez referência a elas em um longo artigo de primeira página na segunda-feira (28). O texto afirmava que o fato da insatisfação da população com a falta de discussão aberta antes do próximo congresso do Partido Comunista vir à tona era "um sinal de democracia e de participação pública, características intrínsecas do socialismo que estamos construindo".

O artigo não acalmou muito os membros do partido. Alguns estão pedindo que a reunião seja adiada para que possa ocorrer o debate público sobre os planos do governo de continuar as reformas na economia cubana, centralmente controlada.

"A base do partido está irritada, e com razão", escreveu Estebán Morales, membro do partido e intelectual em um publicação antes da visita de Obama.

"Nós andamos para trás em termos de democracia no partido porque esquecemos da base, que está lutando e enfrentando nossos problemas diariamente."

Em todo o país, o partido do governo de Cuba está enfrentando desafios duros enquanto tenta governar uma população cada vez mais pessimista e desencantada.

Lutando para alimentar suas famílias com salários em torno de US$ 25 por mês, muitos cubanos veem seu governo como muito ineficiente, não respondendo às necessidades das pessoas comuns. A raiva dos membros proeminentes do partido em meio a reformas socioeconômicas radicais e à normalização das relações com os Estados Unidos aponta uma crise mais profunda de credibilidade.

O artigo no Granma foi publicado menos de uma semana depois que Obama obteve uma resposta entusiasmada de muitos cubanos ao pedir o fim da hostilidade originada na Guerra Fria, além de mais liberdade política e econômica na ilha. No site do jornal também está artigo escrito por Fidel Castro em resposta ao discurso do presidente dos EUA, em que diz: "Minha sugestão modesta é que ele reflita e não tente desenvolver teorias sobre a política cubana."

Muitos cubanos são céticos em relação ao capitalismo de livre mercado, receosos do poder americano, e não conseguem imaginar uma sociedade sem sistemas de saúde e educação gratuitos, implementados pela revolução de 1959. O membro do partido, Francisco Rodriguez, ativista gay e jornalista de um jornal estatal, disse que o discurso de Obama em Havana Velha televisionado nacionalmente, sua conferência de imprensa com o ditador Raúl Castro, e um fórum com empresários cubanos representaram uma espécie de "evangelização capitalista", o que desagrada muitos membros do partido.

Rodriguez disse à Associated Press que a boa recepção de Obama pelo povo cubano havia, no entanto, aumentado a pressão sob o Partido Comunista, com 700 mil membros, para elaborar uma visão mais unificada e credível do futuro.

"A visita de Obama requer que, daqui para frente, trabalhemos para debater e defender nosso consenso social sobre a revolução", disse Rodriguez.

O congresso de 2011 foi precedido por meses de debate vigoroso em reuniões internas sobre documentos detalhados sobre reformas que diminuíram a burocracia estatal e permitiram a meio milhão de cubanos que a trabalharem no setor privado. Ele ajudou a afrouxar o controle estatal das opções econômicas dos cubanos e de algumas liberdades pessoais, levando o país em direção ao emprego autônomo, à maior liberdade para viajar e à maior possibilidade de vender carros e imóveis pessoais.

O artigo afirmou que os meses de debate antes da aprovação dessas reformas tornaram desnecessários uma nova rodada de discussão pública. Ele também reconheceu que apenas 21% das reformas tinham sido concluídas como o previsto.

Nicholas Kamm-22.mar.16/AFP
O presidente dos EUA, Barack Obama, em discurso
O presidente dos EUA, Barack Obama, em discurso "ao povo cubano", em Havana

Na preparação para o próximo congresso, que será realizado entre 16 a 19 de abril, nenhum documento foi tornado público, nenhum debate aconteceu e muitos dos membros mais conhecidos não têm informações sobre a próxima fase de reformas de Cuba.

O Granma disse que mil membros do alto escalão do partido têm revisado os documentos-chave.

"Minha insatisfação está enraizada na falta de discussão sobre os documentos centrais, em segredo até hoje, tanto para as organizações de base do partido quanto para o resto da população", escreveu Rodriguez, no domingo, em carta aberta a Raúl.

O artigo também apontou que congresso "nos permitirá definir com maior precisão o caminho que devemos seguir para que a nossa nação, soberana e verdadeiramente independente desde 1º de janeiro de 1959, construa um socialismo próspero e sustentável".

Rodriguez, que trabalha em estreita colaboração com a filha de Raúl, Mariela, diretora do Centro Nacional para Educação Sexual, definiu o artigo como insatisfatório e pediu que o 7º congresso do Partido fosse adiado, dizendo que muitos colegas de partido compartilhavam seu ponto de vista.

Após o artigo, cerca de 20 pessoas postaram longos comentários no site do jornal, moderado pelo governo, criticando o artigo e o sigilo em torno do próximo congresso, que é amplamente visto como algo que está ajudando a marcar a transição de poder dos irmãos Castro para uma geração mais jovem.

"É um dos últimos congressos dirigidos pela geração histórica", postou uma pessoa identificada como Leandro.

Para ele, a falta de discussões que precedem o congresso "é um precedente negativo, pois os futuros líderes vão se sentir no direito de fazer congressos do partido sem a participação popular".

Tradução de MARIA PAULA AUTRAN


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