Folha de S. Paulo


'Cura' Brochero será o primeiro argentino canonizado

A viagem da capital da província argentina de Córdoba até Villa Cura Brochero leva três horas de carro por uma estrada tortuosa que atravessa o vale de Traslasierra e sobe as impressionantes Altas Cumbres, conjunto montanhoso mais antigo que a Cordilheira dos Andes e que atinge 2.800 m no pico mais alto.

No caminho, veem-se peregrinos que caminham em família ou sozinhos. Num de seus cumes, o viajante vê, às margens da via, a estátua de um homem envolto por um poncho e montado num cavalo.

À primeira vista, ele pouco difere dos personagens de carne e osso que carregam mercadorias de um vilarejo a outro nessa região algo inóspita, ventosa e fria.

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O padre Brochero montado na mula Malacara
O padre Brochero montado na mula Malacara

A figura da estátua, porém, é a do responsável por abrir estradas que hoje conectam populações antes isoladas nas alturas de Córdoba.

José Gabriel del Rosario Brochero (1840-1914) não era engenheiro nem político, e sim um padre que, no lombo de sua montaria (às vezes, cavalo, noutras, uma mula chamada Malacara), viajava distribuindo bênçãos e pressionando governantes a construírem a infraestrutura para o desenvolvimento da região, como hospitais e telégrafos.

Nos intervalos, diz a tradição oral, curava doentes. Ajudou na epidemia de cólera na região no final do século 19. Ele morreu de lepra, que contraiu por tomar mate junto aos doentes isolados.

Até os anos 60, o "cura" (padre) Brochero era só mais um santo popular argentino não reconhecido pela igreja. O país tem uma ampla coleção de ícones de devoção religiosa que a Igreja Católica rejeita ou tarda a aceitar, como Gauchito Gil, camponês que lutou na Guerra do Paraguai (1864-70), e o cacique mapuche Namuncurá, venerado na Patagônia e beatificado após longa campanha.

As petições para tornar Brochero santo começaram a ser enviadas ao Vaticano no fim dos anos 60, mas sua beatificação só ocorreu nos anos 90, e travou desde então.

Foi o papa Francisco, seu conterrâneo, que decidiu torná-lo o primeiro santo nascido e morto na Argentina.

Onde Fica - Villa Cura Brochero

CHEIRO DE OVELHA

A cerimônia que marca a entrada de Brochero no rol de santos católicos ocorrerá em Roma em 16 de outubro, seis semanas após a canonização da Madre Teresa de Calcutá.

"Estamos felizes porque é um santo parecido com o papa Francisco, que ia aonde o povo estava, que se misturava, era informal e acreditava no contato direto", diz à Folha o padre Julio Merediz, um dos que defenderam sua candidatura no Vaticano.

Em Villa Cura Brochero, a população exalta as mesmas qualidades. "Ele fumava e falava 'caralho' quando algo não dava certo. Era como mais um homem do povo", diz a professora Juana Solís.

O próprio papa Francisco, ao referir-se ao contato de Brochero com os camponeses, definiu-o assim: "Era um padre com cheiro de ovelha".

Dois milagres mais recentes atribuídos a Brochero foram definitivos para a decisão de canonizá-lo. São a recuperação de Camila Brusotti, que teve uma lesão cerebral após apanhar do padrasto, e a de Nicolás Flores, que entrara em estado vegetativo após um acidente de carro.

Os médicos haviam considerado os dois casos irreversíveis, mas ambos estão bem atualmente.

"Foi a fé dos familiares, que pediram a recuperação ao cura Brochero, que os salvou", diz o padre Merediz.

Como as duas crianças tiveram lesões cerebrais, o Vaticano levou em conta o fato de, ao se exumarem os restos de Brochero, nos anos 70, seu cérebro ter sido encontrado praticamente intacto.

Na quarta-feira de março em que a Folha esteve no Museu Brocheriano, o local recebia estudantes de uma cidade vizinha, Mina Clavero.

"Córdoba sempre foi o coração geográfico da Argentina, agora é também o espiritual", diz José Encina, peregrino vindo de Jujuy (norte).

A movimentação na cidade de 4.000 habitantes aumentou desde o anúncio da canonização. As festas de janeiro e março, quando se celebram o nascimento e a morte de Brochero, reuniram mais de 150 mil pessoas.

Entre elas, estava o presidente Mauricio Macri, que teve a mais expressiva votação na última eleição presidencial, ano passado, justamente na Província de Córdoba.


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