Folha de S. Paulo


"Socialismo é uma mentira", e temos de ser mais competitivos, diz cubano

RESUMO Ex-produtor do grupo Buena Vista Social Club, o taxista cubano Faustino Garcia Prendes, 53, é há cinco anos um "cuentapropista" (trabalhador autônomo).

Apesar de considerar o sistema socialista "uma mentira", como muitos no país ele teme que a reaproximação com os EUA traga uma mudança brusca, porque acha que os cubanos não estão preparados para competir com empresas estrangeiras.

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Sou nascido e criado em Havana. Me formei em física e comecei a trabalhar para o Estado, mas o salário de 186 pesos cubanos (US$ 7) não dava para me sustentar.

Tornei-me produtor da cantora Omara Portuondo e do Buena Vista Social Club, fazia de tudo para ela, era motorista, eletricista, o que precisassem. Mas ela viaja muito e eu não ganhava nada quando ela estava fora.

Marlene Bergamo/Folhapress
CUBA - HAVANA - UM DIA DEPOIS DA VISITA DE BARACK OBAMA.- 23/03/2016 - Faustino Garcia Prendes, físico e motorista de taxi em Havana. Ele falou sobre a vida em Cuba, e o que ira mudar depois da visita do Presidente americano Barack Obama. Foto - Marlene Bergamo/Folhapress
Faustino Garcia Prendes, físico e motorista de táxi, diz que cubanos precisam ser mais competitivos

Virei cuentapropista há cinco anos e foi a melhor decisão. É muito melhor que ser estatal. Aqui meu chefe sou eu, faço os meus horários e o meu dinheiro. Mas a competição é desleal. Só posso pegar passageiro na rua, os pontos mais lucrativos, como aeroporto, hotéis e terminais de cruzeiros são exclusivos do Estado. Se querem abrir a economia, deveriam dar oportunidades iguais.

Quem fatura mais com o aumento de turistas é o Estado, que controla a maior parte da economia.

Houve uma expectativa exagerada aqui com as relações com os EUA e a visita do Obama, por isso muita gente se decepcionou. Achavam que as mudanças seriam rápidas, que era o fim do embargo americano, sem entender que isso não depende de Obama, mas do Congresso.

Não creio que haverá uma mudança de sistema político e nem saberia dizer como isso aconteceria. Estou acostumado, nunca vivi em outro sistema, capitalismo, feudalismo ou o que seja.

Há muitas coisas que podem ser melhoradas sem mudar o sistema. Os chineses são socialistas e têm um sistema diferente. Se pudéssemos cobrir nossas necessidades com o que ganhamos, as pessoas não estariam inconformadas.

Hoje qualquer um pode ser "cuentapropista", basta ter dinheiro para comprar um bem. Tenho um Lada 1976, que vale uns US$ 12 mil.

Com Fidel [Castro] havia trabalhadores autônomos nos paladares [restaurantes montados em casas particulares], vendedores de artesanato e outros comércios, mas em muito menor escala.

Para ser taxista autônomo, basta ter um carro em seu nome, passar pelo exame e pagar imposto. Para uma pizzaria, basta ter o local e justificar de onde vem a matéria-prima, e assim por diante.

Vou lhe dizer, o povo cubano é fidelista. Muita gente critica a revolução, mas quando o Fidel Castro falava, todos escutavam, ele sempre atraiu com sua personalidade. Na transição para Raúl, as pessoas no começo ficaram preocupadas.

Raúl não era bem visto, achavam que ele colocaria este país em guerra com os americanos. Mas ele fez muitas mudanças, como autorizar os telefones celulares, permitir que os cubanos possam vender suas propriedades e ampliou o acesso à internet.

Abriu algumas janelas e as pessoas já não pensavam mais se quem estava no poder era Raúl ou Fidel, só queriam melhorar de vida.

Com Raúl houve uma mudança de 180 graus. Não há liberdade suficiente em Cuba, mas esse não é o maior problema. O que adianta alguém ficar protestando na rua se não há oportunidades econômicas?

Muitos dos nossos problemas não vêm do socialismo, mas dos cubanos. Em cada cinco pessoas, há um que trabalha duro, em algum momento ele se cansa de trabalhar para os outros. O socialismo é uma mentira. As pessoas não são iguais. Quem estudou seis anos para ser engenheiro não pode ganhar o mesmo que um lixeiro.

O que temos de fazer é produzir e parar de nos esconder atrás da política.

Se este país se tornar capitalista, vamos ter muitas dificuldades, pois os cubanos não estão acostumadas a dar duro. Não aprendemos a ser competitivos. A verdade é que a maioria não sabe muito bem o que quer. O socialismo não funciona, mas, se o capitalismo chegar, os pequenos vão sumir. Quem tem capital vai mandar e o resto vai trabalhar para eles.

[O presidente americano, Barack] Obama veio com ideias interessantes, mas elas parecem boas para os americanos, para mim nem tanto.

Dizer que o futuro de Cuba depende dos cubanos não me vale muito, eu sei disso há 50 anos. Além disso, o mandato dele está no fim, no próximo ano vem outro presidente e tudo pode voltar à estaca zero com os americanos.

Para nós que trabalhamos com turistas, o grande acontecimento da semana não foi a visita do Obama, mas o show do Rolling Stones, que trouxe muita gente a Cuba. As coisas mudaram muito. Gostar de rock já foi crime, considerado contrarevolucionário.

Morei um ano na Itália numa casa de shows cubanos, mas voltei. Este é o meu país. Apesar de tudo, não trocaria Havana por nenhum lugar do mundo.


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