Folha de S. Paulo


Leia íntegra da entrevista coletiva de Barack Obama e Raúl Castro em Cuba

O presidente dos EUA, Barack Obama, e o ditador de Cuba, Raúl Castro, abordaram nesta segunda-feira (21) o embargo econômico e as questões de direitos humanos e liberdades fundamentais em Cuba, mas prometeram que, apesar das diferenças, continuarão seguindo adiante na construção de um novo caminho entre os dois países.

Durante entrevista coletiva concedida após um encontro bilateral no Palácio da Revolução, o ditador cubano admitiu haver falhas de direitos humanos em Cuba, mas fez a ressalva de que isso não é um problema que se restringe à ilha.

Leia abaixo a íntegra da entrevista, divulgada pela Casa Branca. As perguntas e respostas de Raúl Castro seguem segundo intérprete.

*

Obrigado, presidente Castro, por sua hospitalidade em Havana. E obrigado, sr. presidente. Em sua reunião com o presidente Castro, que palavras empregou para exortá-lo a promover reformas democráticas e ampliar os direitos humanos aqui em Cuba? O senhor vai convidar o presidente Castro à Casa Branca? Sabemos que ele já foi a Nova York. E por que o senhor não se reuniu com Fidel Castro? E, presidente Castro, meu pai é cubano. Ele partiu para os Estados Unidos quando era jovem. O senhor enxerga um rumo novo e democrático para seu país? E por que vocês têm presos políticos cubanos? Por que não os libertam? E, mais uma pergunta, quem o senhor prefere, Hillary Clinton ou Donald Trump? Obrigado.

Obama: Bem, como acho que nós dois indicamos, tivemos um diálogo muito frutífero sobre questões de democracia e direitos humanos. Nosso ponto de partida é que temos dois sistemas diferentes —dois sistemas diferentes de governo, duas economias diferentes. E temos décadas de diferenças profundas, bilateral e internacionalmente. O que eu disse ao presidente Castro é que estamos indo para frente, e não olhando para trás; que não enxergamos Cuba como uma ameaça aos Estados Unidos. Espero que minha visita aqui assinale o grau em que estamos lançando um novo capítulo nas relações entre EUA e Cuba.

Mas, como é o caso com países de todo o mundo com os quais normalizamos relações, vamos continuar a defender os princípios básicos em que acreditamos. A América acredita na democracia. Acreditamos que a liberdade de expressão, a liberdade de reunião e a liberdade de religião são valores não apenas americanos, mas universais. Elas podem não expressar-se exatamente do mesmo modo em cada país, podem não constar dos documentos de fundação ou da Constituição de cada país da mesma maneira e podem não ser legalmente protegidas exatamente da mesma maneira, mas o impulso —o impulso humano em direção à liberdade, à liberdade da qual falava José Martí, acreditamos ser esse um anseio universal.

O presidente Castro, creio eu, observou que, em sua visão, assegurar que todos tenham educação decente, saúde, segurança básica na velhice —que essas coisas também constituem direitos humanos. Eu, pessoalmente, não discordaria dele.

Mas isso não diminui algumas dessas outras preocupações. E a finalidade do diálogo sobre direitos humanos não é que os Estados Unidos ditem a Cuba como os cubanos devem se governar, mas assegurar que tenhamos uma conversa franca e cândida sobre esse tema e, esperemos, que possamos aprender uns com os outros. Isso não significa que esse precise ser nosso único tópico de discussão. A economia, a saúde, intercâmbios científicos, cooperação internacional sobre questões de monta regional e global, também são importantes. Mas a questão dos direitos humanos é algo sobre o qual vamos continuar focados. Pessoalmente, saúdo o fato de o presidente Castro ter comentado sobre algumas das áreas em que ele acha que estamos deixando a desejar, porque acho que não devemos ser imunes a críticas ou discussões, nem devemos temê-las.

Eis o que eu sei quando converso com cubano-americanos —e, Jim, você é da segunda geração, de modo que acredito que eu fale não por você diretamente, mas por muitos com quem converso pelos EUA afora—: acho que existe enorme esperança de que possa haver uma reconciliação. E a ponte que o presidente Castro discutiu pode ser construída entre a comunidade cubano-americana e os cubanos aqui. Há laços familiares e culturais fortíssimos. E creio que todos se beneficiariam se esses laços fossem reatados.

Um dos empecilhos ao fortalecimento desses laços são essas divergências sobre direitos humanos e democracia. E, na medida em que possamos ter uma conversa positiva sobre esse assunto e possamos realmente avançar, acredito que isso nos permitirá ver o florescimento pleno de um relacionamento que é possível. E, na ausência disso, penso que continuará a ser um fator muito forte de irritação. E isso não se aplica unicamente às relações entre EUA e Cuba. É algo sobre o qual falo quando vamos a reuniões bilaterais com alguns de nossos aliados muito estreitos e também com países com os quais não temos um relacionamento tão estreito.

Mas acho que é algo que tem importância. Já me encontrei com pessoas que foram sujeitas à detenção arbitrária, e esse geralmente é um tema sobre o qual preciso me manifestar, porque converso diretamente com essas pessoas e sei o que isso significa para elas. Com licença.

Castro: Eu estava perguntando se a pergunta dele era dirigida a mim ou ao presidente Obama. O senhor falou em presos políticos.

Obama: Acho que a segunda pergunta foi dirigida ao senhor Trump e Hillary.

Castro: A ele ou a mim?

Ao senhor, sr. presidente.

Castro: O que você disse a respeito de presos políticos? Poderia repetir a pergunta sobre presos políticos? Você perguntou se temos presos políticos?

Eu quis saber se vocês têm presos políticos cubanos e por que não os soltam.

Castro: Dê-me a lista de presos políticos e eu os libertarei imediatamente. Apenas mencione uma lista. Que presos políticos? Quando esta reunião terminar, você poderá me dar uma lista de presos políticos. E, se tivermos esses presos políticos, eles serão libertados antes de esta noite chegar ao fim.*

E Donald Trump ou Hillary Clinton, presidente Castro?

Castro: Bem, eu não posso votar nos Estados Unidos.

Minha pergunta é para o presidente Raul Castro. Sou da TV cubana. Presidente Raul Castro, o senhor declarou repetidas vezes, e o reiterou hoje, que precisamos aprender a conviver civilizadamente com nossas diferenças. Poderia ampliar esse conceito? Este é um momento histórico que estamos vivendo.

E depois tenho uma pergunta curta para fazer ao presidente Obama. Presidente Obama, o governo americano poderia dar mais espaço durante seu mandato para a eliminação do bloqueio americano, para que outra geração de cubanos não precise sofrer este bloqueio econômico e comercial contra Cuba?

Castro: A primeira pergunta foi para mim. Peço que repita sua pergunta, porque não ouvi bem.

O senhor declarou reiteradamente que precisamos aprender a conviver civilizadamente com nossas diferenças.

Castro: Bem, o próprio presidente Obama já aludiu a isso. Demos os primeiros passos —muitos, por serem os primeiros passos. E precisamos continuar a dar esses passos. Tenho certeza de que poderemos conviver pacificamente em um ambiente de cooperação mútua, como já estamos fazendo em muitos campos, para o benefício dos dois países e com o benefício de outros países, como já fizemos —no Haiti, com relação ao cólera, e na África, com o ebola. Esse é o futuro da humanidade, se quisermos salvar a espécie humana. O nível de água sobe e a ilha pode encolher.

Vocês estão fazendo perguntas demais a mim. Acho que perguntas devem ser dirigidas ao presidente Obama.

Obama: Administrativamente falando, já fizemos várias modificações ao embargo. Falei de várias delas em minha declaração inicial. E, na realidade, estamos sendo bastante assertivos ao exercer o máximo possível de flexibilidade, considerando que a lei que instituiu o embargo não foi revogada pelo Congresso. Pode haver alguns aspectos técnicos do embargo nos quais ainda possamos fazer alguns ajustes, dependendo dos problemas à medida que surgem.

Assim, por exemplo, a questão do dólar e da necessidade de fazer modificações em termos de como o embargo foi implementado, para incentivar, em lugar de desencorajar, reformas que o próprio governo cubano está disposto a empreender e para facilitar maior comércio. Isso é algo que surgiu do diálogo entre nossos governos, e fizemos ajustes apropriados. Será preciso algum tempo para os bancos comerciais entenderem as novas regras, mas na realidade achamos que esta é uma área em que poderemos melhorar as circunstâncias atuais.

Mas serei franco com vocês: a lista de coisas que podemos fazer administrativamente está ficando mais curta, e a parte maior das mudanças que precisam ser feitas com relação ao embargo vai depender de o Congresso fazer mudanças.

Tenho falado muito claramente sobre o interesse de que isso seja feito antes de eu deixar a Presidência. Francamente, o Congresso não é tão produtivo quanto eu gostaria em um ano de eleição presidencial. Mas o fato de termos uma delegação parlamentar tão grande nos acompanhando aqui, com parlamentares democratas e republicanos, é um indicativo de que há interesse crescente no Congresso em que o embargo seja levantado.

Como indiquei agora há pouco em minha resposta anterior, a rapidez com que isso vai acontecer vai depender em parte de conseguirmos superar algumas de nossas diferenças em questões de direitos humanos. É por isso que o diálogo é tão importante, a meu ver. Ele transmite a mensagem de que, pelo menos, há um engajamento entre os dois países sobre esses temas.

Agora, prometi ao presidente que eu responderia a mais uma pergunta. Andrea Mitchell da NBC.

Obrigado, senhor presidente. Depois da reunião de hoje, o senhor pensa que fez progresso suficiente para acelerar o ritmo e que o governo cubano vai poder agir com presteza suficiente para que as mudanças conseguidas através desses ajustes técnicos ao embargo sejam permanentes e não possam ser revertidas pelo próximo presidente? E que conselho o senhor daria ao presidente Castro quanto à possibilidade de ter o bloqueio, o embargo, levantado? Porque ele voltou a declarar hoje que esse é um problema contínuo que barra o progresso, do ponto de vista deles.

E o senhor disse que as discussões sobre direitos humanos foram francas e diretas e que o senhor quer avançar. Mas, enquanto mesmo o senhor chegava, foram feitas prisões dramáticas em protestos pacíficos, as Senhoras de Branco. Que mensagem isso transmite? É possível haver convivência pacífica ao mesmo tempo em que há divergências tão profundas sobre as próprias definições do que significam direitos humanos, conforme o presidente Castro expressou hoje?

E, falando com o presidente Castro, para muitos de nós é notável ouvi-lo falar sobre todos esses tópicos. O senhor pode nos dizer o que enxerga no futuro? O presidente Obama ainda tem mais nove meses no governo. O senhor já disse que vai deixar seu cargo em 2018. Qual é o futuro de nossos dois países, dadas as diferentes definições e interpretações de questões profundas como democracia e direitos humanos? Obrigada.

Obama: Bem, Andrea, o embargo vai acabar. Quando, não tenho certeza, mas creio que vai acabar. E o caminho que estamos trilhando vai continuar, mais além de minha administração. A razão disso é lógica. A razão é que aquilo que fizemos por 50 anos não atendeu aos nossos interesses nem aos interesses do povo cubano. E, como eu disse quando anunciamos a normalização de relações, se você continuar a repetir uma mesma coisa sempre ao longo de 50 anos e ela não funciona, faz sentido tentar fazer algo novo.

E é isso o que fizemos. E o fato de que tem havido apoio forte a isso não apenas no Congresso, não apenas entre o povo americano, mas também por parte do povo cubano, indica que este é um processo que deve e vai continuar. Isto dito, o levantamento do embargo requer o voto de uma maioria no Congresso e possivelmente mais que uma maioria no Senado.

E, como indiquei ao presidente Castro, duas coisas eu creio que vão ajudar a acelerar o fim do embargo. A primeira é o grau em que poderemos aproveitar as mudanças existentes, que já empreendemos, e ver avanços que ajudem a validar esta mudança de política.

Assim, por exemplo, dissemos que deixou de existir restrições a que empresas americanas invistam em ajudar a construir infraestrutura de internet e banda larga em Cuba. Isso não é contra a lei americana, como foi interpretado pela administração. Se começarmos a ver esses tipos de acordos comerciais acontecendo e os cubanos beneficiando-se de maior acesso à internet —e, quando eu for ao encontro de empreendedorismo mais tarde hoje, ouvi que vamos conhecer alguns jovens cubanos que já estão sendo treinados e estão hábeis no uso da internet e interessados em start-ups—, isso vai construir uma base de apoio para que seja encerrado o embargo. Se levarmos adiante e ampliarmos o trabalho que estamos fazendo na agricultura, e começarmos a ver mais agricultores americanos interagindo com agricultores cubanos e se houver mais exportações e importações, tudo isso aumenta a base de apoio, e cresce a possibilidade de pôr fim ao embargo. Assim, esperemos que aproveitar o que já realizamos ajude.

A segunda área, que já discutimos extensamente, é a questão dos direitos humanos. As pessoas ainda estão preocupadas com o que acontece dentro de Cuba. Agora, guarde em mente que tenho divergências muito grandes com os chineses na questão dos direitos humanos. Vou ao Vietnã este ano, e tenho divergências grandes com eles, também. Quando primeiro visitamos a Birmânia, as pessoas questionaram se deveríamos estar indo para lá, considerando as violações de direitos humanos ali cometidas havia muitos anos, ao nosso ver. E a abordagem que tenho tomado é que eu me posiciono de modo franco e claro, afirmando nossas posições, mas também dizendo claramente que não podemos impor mudanças a qualquer país. Em última análise, as mudanças precisam vir de dentro. Esta vai ser uma estratégia mais útil do que o desengajamento rígido seguido por 50 anos, que não realizou nada.

Acho que em última análise, Andrea, isso se resume a uma coisa: tenho fé nas pessoas. Acho que se vocês encontrarem cubanos aqui e cubanos encontrarem americanos, e eles se encontrarem, conversarem, interagirem e fizerem negócios juntos, estudarem juntos e aprenderem uns com os outros, reconhecerão que pessoas são pessoas. E acredito que as mudanças vão acontecer nesse contexto.
Muito bem, agora terminei, mas, senhor presidente, acho que Andrea tinha uma pergunta ao senhor sobre sua visão. Cabe ao senhor. Ele disse que só responderia a uma pergunta e que eu responderia a duas. Mas deixo a seu critério responder à pergunta ou não.

Por favor. (risos)

Obama: Andrea é uma das jornalistas mais respeitadas da América e tenho certeza de que ela apreciaria simplesmente uma resposta breve.

Castro: Andrea

Senhor presidente.

Castro: Existe um programa aqui a ser cumprido. Sei que se eu continuar aqui, você fará 500 perguntas. Eu disse que responderia uma pergunta. Bem, respondi a uma e meia. O presidente Obama já me ajudou com a resposta aqui, Andrea.

Eu estava lendo algo sobre direitos humanos, mas agora eu colocarei a pergunta a você. Existem 61 instrumentos internacionais reconhecidos. Quantos países no mundo respeitam todos os direitos humanos e direitos civis incluídos nesses 61 instrumentos? Que país respeita todos? Você sabe quanto? Eu sei. Nenhum.

Nenhum, nenhum. Alguns países respeitam alguns direitos; outros respeitam outros. E nós estamos entre esses países. Desses 61 instrumentos, Cuba vem cumprindo 47 desses instrumentos de direitos humanos. Existem países que possivelmente cumpram mais, e há aqueles que cumprem menos.

Acho que a questão dos direitos humanos não deve ser politizada. Isso não é correto. Existe um objetivo que vai permanecer. Por exemplo, no caso de Cuba, o desejo de todos os direitos. Você acha que existe direito mais sagrado que o direito à saúde, de modo que bilhões de crianças não morram por simples falta de uma vacina, uma droga ou um medicamento? Você concorda com o direito ao ensino gratuito para todos os nascidos em qualquer lugar do mundo, em qualquer país? Acho que muitos países não enxergam isso como um direito humano. Em Cuba, todas as crianças nascem no hospital e são registradas no mesmo dia, porque quando as mães estão em estado adiantado da gravidez elas se internam no hospital muitos dias antes do parto, de modo que todas as crianças nascem em hospitais. Não importa que vivam em lugares distantes, em montanhas ou colinas. Temos muitos outros direitos —o direito à saúde, o direito à educação.

E esse é o último exemplo que darei. Você acha que, para trabalho igual, os homens ganham mais do que ganham as mulheres, simplesmente porque são homens? Bem, em Cuba as mulheres recebem pagamento igual por trabalho igual. Posso lhe dar muitos, muitos exemplos. Não acho que possamos usar o argumento dos direitos humanos para confrontos políticos. Isso não é justo. Não é correto.

Não estou dizendo que não seja honesto. Faz parte dos confrontos, é claro. Mas deixe-nos trabalhar para que possamos cumprir todos os direitos humanos. É como falar sobre orgulho. Vou encerrar por aqui porque temos o compromisso de terminar dentro do horário. Não é correto me perguntar sobre presos políticos em geral. Por favor me dê o nome de um preso político específico.

E acho que já basta. Concluímos. Obrigado por sua participação.

Tradução de CLARA ALLAIN

Obama em Cuba


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