Folha de S. Paulo


Leia íntegra do discurso de Raúl Castro após reunião com Obama em Cuba

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o ditador de Cuba, Raúl Castro, abordaram nesta segunda-feira (21) o embargo econômico e as questões de direitos humanos e liberdades fundamentais em Cuba, mas prometeram que, apesar das diferenças, continuarão seguindo adiante na construção de um novo caminho entre os dois países.

No segundo dia de sua viagem histórica de Obama a Cuba, os representantes participaram de uma entrevista coletiva após encontro bilateral. Leia abaixo a íntegra do discurso do ditador cubano.

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"Senhor presidente Barack Obama, temos o prazer de recebê-lo nesta primeira visita de um presidente dos Estados Unidos da América a nosso país em 88 anos.

Nos 15 meses passados desde que foi tomada a decisão de estabelecer nossas relações diplomáticas, pudemos observar que obtivemos resultados concretos. Pudemos retomar os intercâmbios postais diretos e firmamos um acordo para a retomada dos voos comerciais.

Assinamos dois memorandos de entendimento sobre a proteção do meio ambiente e das áreas marítimas e outro para assegurar a segurança da navegação marítima. Hoje será assinado outro memorando de cooperação na área da agricultura. Neste momento está sendo negociado outro conjunto de instrumentos bilaterais de cooperação em áreas como o combate aos narcóticos, a segurança do comércio, viagens e saúde.

Sobre esse último ponto, concordamos em aprofundar nossa cooperação na prevenção e tratamento de doenças contagiosas, como a zika, e doenças crônicas não contagiosas, incluindo o câncer.

Essa cooperação é benéfica não apenas a Cuba e aos Estados Unidos, mas a todo nosso hemisfério em geral. Após as decisões tomadas pelo presidente Obama de modificar a aplicação de alguns aspectos do bloqueio, empresas cubanas e suas contrapartes americanas estão trabalhando para identificar possíveis operações comerciais que possam concretizar-se dentro do contexto ainda restritivo dos regulamentos existentes.

A verdade é que algumas já se concretizaram, especialmente na área das telecomunicações –um campo em que nosso país já possui um programa traçado com base em suas prioridades e na soberania tecnológica necessária, um programa que poderá assegurar as visões apropriadas e atender aos interesses nacionais.

Também foram feitos avanços em direção à aquisição de medicamentos, materiais médicos e equipamentos de geração elétrica e proteção ambiental, entre outros. Muito mais poderia ser feito se o embargo fosse levantado.

Reconhecemos a posição do presidente Obama e sua administração contra o embargo e estamos cientes de seus repetidos apelos feitos ao Congresso para que o embargo seja levantado. As medidas mais recentes adotadas por sua administração são positivas, mas insuficientes. Tive a oportunidade de discutir com o presidente outros passos que pensamos que poderiam ser tomados para levantar as restrições que permanecem em vigor e fazer uma contribuição significativa para a derrubada do bloqueio.

Isso é essencial, porque o bloqueio continua em vigor e contém elementos desencorajadores, efeitos intimidadores e alcance extraterritorial.

Apresentei ao presidente alguns exemplos disso, mostrando suas consequências negativas para Cuba e também outros países. O bloqueio permanece como o mais importante obstáculo ao nosso desenvolvimento econômico e ao bem-estar da população cubana. Assim, sua remoção será essencial para a normalização das relações bilaterais. E sua remoção vai beneficiar os emigrantes cubanos que desejam o melhor para suas famílias e seu país.

Para podermos avançar rumo à normalização, também será necessário devolver o território ocupado ilegalmente pela Base Naval de Guantánamo. Como essas questões permanecem como os dois obstáculos principais, elas foram tratadas novamente no editorial publicado em 9 de março pelo jornal oficial do Partido Comunista de Cuba.

E, de novo, apenas quatro dias atrás, na entrevista coletiva à imprensa concedida por nosso ministro do Exterior, Bruno Rodriguez, esses pontos foram extensamente cobertos pela mídia.

Outras políticas também precisam ser abolidas para que relações normais se desenvolvam entre os Estados Unidos e Cuba. Ninguém deve ter a intenção de fazer o povo cubano renunciar ao destino que escolheu em liberdade e soberania, o mesmo destino pelo qual vocês fizeram sacrifícios enormes.

Também discutimos questões internacionais, especialmente as que podem ter um impacto sobre a paz e estabilidade regionais. Tínhamos pensado em discutir outras questões, mas não tivemos tempo para isso. Eu tinha planejado falar de nossa preocupação com a desestabilização que alguns setores estão tentando promover na Venezuela, algo que consideramos contraproducente para a situação geral do continente. Não tive a oportunidade de levantar esse ponto com ele, mas o estou levantando aqui.

Do mesmo modo, falamos do processo de paz em curso na Colômbia e do esforço para pôr fim a esse conflito. Existem diferenças profundas entre nossos países, diferenças que não irão desaparecer. Como temos conceitos divergentes sobre muitos temas, como sistemas políticos, democracia, o exercício dos direitos humanos, justiça social, relações internacionais e a paz e estabilidade mundiais.

Nós defendemos os direitos humanos. Em nossa visão, os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais são indivisíveis, interdependentes e internacionais. Na verdade, consideramos inconcebível que um governo não defenda e garanta o direito à saúde, educação, seguridade social com benefícios e desenvolvimento, salários iguais e os direitos dos menores de idade. Somos contra a manipulação política e os dois pesos e duas medidas na abordagem aos direitos humanos.

Cuba tem muito a dizer e mostrar nesse quesito. É por isso que reiterei ao presidente nossa posição de continuar avançando com o diálogo já iniciado sobre esta questão.

Obama em Cuba

Em 17 de dezembro de 2014, quando anunciamos a decisão de restabelecer as relações diplomáticas, eu disse que deveríamos aprender a arte de coexistir com nossa diferença, de maneira civilizada. Nas declarações que dei ao Parlamento em 15 de julho de 2015, eu disse que mudar tudo o que precisa ser mudado é a preocupação soberana e exclusiva dos cubanos. O governo revolucionário está disposto a avançar para uma normalização das relações, porque está convencido de que os dois países podemos conviver e cooperar de maneira civilizada e mutuamente benéfica, independentemente das divergências atuais e futuras, e, desse modo, contribuir para a paz, segurança, estabilidade, desenvolvimento e igualdade em nosso continente e no mundo.

Hoje eu reafirmo que precisamos exercer a arte da convivência civilizada, que envolve a aceitação e o respeito das diferenças, impedindo que elas se tornem o ponto central de nosso relacionamento.

Em vez disso, devemos promover vínculos que possam beneficiar ambos nossos países e povos, ao mesmo tempo enfocando as coisas que nos aproximam, e não as que nos distanciam. Concordamos que ainda há um caminho longo e complexo pela frente. Mas o mais importante é que já começamos a dar os primeiros passos para construir um novo tipo de relacionamento, um que nunca existiu entre Cuba e os Estados Unidos.

Na verdade, destruir uma ponte pode ser um empreendimento fácil e rápido. Sua reconstrução sólida, contudo, pode ser uma tarefa demorada e árdua. Após quatro tentativas fracassadas, e depois de dar provas de vontade e perseverança, em 2 de setembro de 2013 a nadadora americana Diane Nyad conseguiu atravessar o Estreito da Flórida, nadando sem a proteção de uma gaiola contra tubarões.

Saudamos essa proeza de conquista das diferenças geográficas entre nossos dois países. Foi por essa proeza que, em 30 de agosto de 2013, ao som dos hinos nacionais de Cuba e dos Estados Unidos, a nadadora recebeu a Ordem do Mérito Esportivo, uma declaração concedida pelo Conselho de Estado. Uma proeza como essa transmite uma mensagem poderosa.

É uma mensagem que deve servir de exemplo de honrar as relações bilaterais, pois confirma que, se a nadadora conseguiu fazê-lo, também nós conseguiremos. Presidente Obama, reitero nossa apreciação de sua visita e a disposição do governo de Cuba de continuar a avançar pelo bem-estar de nossos países. Muito obrigado."

Tradução de CLARA ALLAIN


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