Folha de S. Paulo


Viagem de Obama é validação da Revolução Cubana, diz historiador

A visita de Barack Obama a Cuba, que começa no próximo domingo (20), busca virar a página da história de intervencionismo dos Estados Unidos na América Latina e tornar irreversível a reaproximação entre os dois países iniciada pelo presidente, diz o historiador Peter Kornbluh.

Coautor de um livro recém-lançado sobre "a história oculta" das negociações entre EUA e Cuba, Kornbluh diz que a visita de Obama é um símbolo da "validação" americana da Revolução Cubana.

Yamil Lage - 13.ago.2014/AFP
O historiador americano Peter Kornbluh apresenta seu livro
O historiador americano Peter Kornbluh apresenta seu livro "Back Channel to Cuba" em Havana

Com base em viagens frequentes a Cuba desde a retomada das relações entre os países, em dezembro de 2014, Kornbluh diz que o efeito do processo na vida dos cubanos é visível, com maior acesso à internet e mais pessoas na iniciativa privada.

Leia trechos da entrevista de Kornbluh à Folha.

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Folha - A visita de Obama torna a reaproximação irreversível?

Peter Kornbluh - A visita de Obama claramente tem o objetivo de consolidar suas iniciativas e torná-las muito difíceis de serem revertidas pelo próximo presidente, quem quer que seja.

Ele está levando uma comitiva de empresários cubano-americanos, e parlamentares, entre eles certamente alguns republicanos.

Obama está indo agora para ter tempo, ainda como presidente, de reforçar a pressão que a visita inevitavelmente criará pela normalização das relações comerciais com Cuba, no Congresso e no sistema político americano.

O momento da visita é importante também porque ocorre semanas antes do congresso do Partido Comunista de Cuba. Acho que a dinâmica gerada pela visita ajudará aqueles em torno de Raúl Castro que defendem intensificar a reaproximação enquanto Obama ainda é presidente.

Ainda há considerável resistência nos EUA à reaproximação, como mostra o discurso republicano. O mesmo ocorre em Cuba?

Primeiro, acho que não há tanta resistência assim nos EUA. Há resistência dos republicanos no Congresso, mas este é um ano eleitoral, por que eles ajudariam Obama? Aí está a resistência e não na maioria dos eleitores.

Se há resistência em Cuba? Há um histórico de agressão dos EUA a Cuba, e os confrontos à soberania cubana continuam, como os programas de democracia ou o de incentivo à fuga de médicos.

Estes são alguns temas que deixam altos funcionários cubanos relutantes. Estamos falando de mudanças que vão no núcleo da Revolução Cubana, como a igualdade social e o fim da exploração.

E à medida em que a privatização começa e empresas americanas se instalam e empregam cubanos, essas questões reemergem. Mais cubanos vão subir de vida e mostrar símbolos de status, numa sociedade que se afastou disso. Até agora status era ser revolucionário, não ser rico.

São temas que estão no centro do debate sobre a natureza e a velocidade das mudanças em Cuba. A natureza positiva da agenda tem o objetivo de empurrar os dois lados para a frente. Acho que veremos uma grande demonstração de apreço por Obama nas ruas de Cuba.

Acha que haverá um encontro com Fidel Castro?

Não acredito. A mídia americana demonizou Fidel nos últimos anos. Agora ele está velho e fragilizado. Acho que a presença de Obama em Havana é um símbolo da validação americana à Revolução Cubana, mesmo se ele não se encontrar com Fidel.

A imprensa tem especulado sobre o que Fidel pensa de tudo isso, mas ele tem mantido silêncio. Meu livro mostra como Fidel repetidamente procurou os presidentes americanos para saber se a normalização era possível.

Ele procurou quase todos os presidentes dos EUA em sua primeira semana no cargo, começando por Kennedy. Fidel tinha esperança nisso e viveu o suficiente para ver um presidente americano visitar Cuba sob o seu governo revolucionário. Não é pouco.

Os críticos da reaproximação afirmam que ela fortalece o regime e pouco beneficia o povo.

Quem diz isso não esteve em Cuba recentemente. Tenho ido a Cuba a cada dois meses desde 2014. Vi pessoalmente a expansão no uso da internet, as mudanças na regulação que permitiram ao Google operar em Cuba como parte dessa normalização.

Vi a proliferação de restaurantes privados, táxis particulares, expansão de serviços, e o aumento da quantidade de cubanos nessas atividades. Testemunhei eles se tornarem mais abertos sobre o que pensam de seu futuro.

O mais importante é que a economia cubana está em transição. É algo que EUA e outros países gostariam de ver avançar, assim como os cubanos. O regime não mudou, mas esse nunca foi o argumento de Obama.

Trata-se de uma estratégia de longo prazo de relações normais em que dois países com sistemas bastante diferentes buscam seus interesses. A grande diferença é que os EUA cessam de ser uma ameaça existencial a Cuba e à sua revolução.

Obama chamou de "fracassada" a política americana em relação a Cuba nas últimas décadas. É possível que ele faça um mea culpa?

Estava no Panamá quando Obama encontrou Raúl e ele aludiu ao fato de que os EUA haviam ido além dos limites da persuasão na América Latina. Interpretei isso como um pedido de desculpas, embora não explícito.

Obama acha que os EUA se metem em problemas quando não usam os veículos normais de persuasão. E claro que ele indiretamente se referia à política Nixon-Kissinger na América do Sul, a campanha contra [Salvador] Allende no Chile, a [invasão da] Baía de Porcos e outros.

Essa reaproximação é importante não só para as relações com Cuba, mas com toda a região. Brasil, México, Argentina e outros merecem muito crédito por terem mantido a pressão em relação a Cuba.


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