Folha de S. Paulo


Viagem de Obama a Cuba mostra afastamento do foco em dissidentes

Dezenas de policiais uniformizados e à paisana assistem silenciosamente, todo domingo de manhã, a dissidentes vestidas de branco em fila para entrar na missa na igreja de Santa Rita, em um bairro arborizado de Havana, com mansões de frente para o estreito da Flórida.

Os oficiais não agem até as mulheres gritarem "Liberdade!" e tentarem se sentar na rua em frente à igreja. As manifestantes são levadas para delegacias de polícia e escolas vazias, ficam horas por lá, são liberadas e levadas para casa, para voltar na semana seguinte.

Alexandre Meneghini - 10.dez.2015/Reuters
Dissente do
Dissidente do "Damas de Branco" é detida após protesto no Dia Internacional dos Direitos Humanos

A coreografia bem ensaiada de protesto tornou-se uma característica das manhãs de domingo em Cuba. Cerca de 9.000 vezes, no ano passado, as autoridades comunistas prenderam rapidamente dissidentes em demonstrações de força que se tornaram uma questão inflamada no debate sobre a viagem de três dias do presidente Barack Obama para a ilha neste mês.

Os pré-candidatos republicanos à Presidência dos Estados Unidos, Ted Cruz e Marco Rubio, filhos de imigrantes cubanos, dizem que a repressão às manifestações em Cuba mostra que o presidente Raúl Castro não tem nenhuma intenção de responder à aproximação de Obama com maior liberdade para o povo cubano.

A administração Obama reconhece que Castro tem sido lento para reagir, mas diz que essa não é a questão. Depois de décadas de esforços dos EUA para fomentar a democracia, apoiando dissidentes cubanos e suas demandas de rápidas mudanças políticas, a viagem do presidente vai representar uma volta de 180 graus na política americana em relação à ilha.

Os Estados Unidos estão apostando que as ligações renovadas entre o país e Cuba vão fazer mais para mudar o governo de partido único da ilha e a economia centralizada do que meio século de confronto.

Os EUA estão agora tentando apoiar uma classe média cubana cada vez mais independente e que um dia exigirá mais direitos de seu governo. É provável que a estratégia leve anos ou até décadas para se provar como um fracasso ou um sucesso.

"O fato é que não temos nenhuma expectativa de que Cuba vá transformar seu sistema político no curto prazo", disse o vice-conselheiro de segurança nacional Ben Rhodes, um dos arquitetos da política de Obama em relação ao país. "Mesmo se tivéssemos dez dissidentes fora da prisão, de que adianta? O que vai trazer a mudança é fazer com que os cubanos tenham mais controle sobre suas próprias vidas."

Behar Anthony - 29.set.2015/Efe
O ditador cubano, Raúl Castro, e o presidente dos EUA, Barack Obama, na sede da ONU, onde voltaram a defender o fim do embargo a Cuba
O ditador cubano, Raúl Castro, e o presidente dos EUA, Barack Obama, na sede da ONU, em setembro

O governo Castro parece muito consciente da estratégia dos EUA e altamente resistente a ela. Ele publicou um longo editorial nesta quarta-feira (9) sobre a visita de Obama.

Foram três páginas no jornal do Partido Comunista, o "Granma", declarando que "profundas diferenças conceituais sobre os modelos políticos, a democracia, o exercício dos direitos humanos, a justiça social, as relações internacionais, a paz e a estabilidade persistirão entre Estados Unidos e Cuba".

Embora a agenda de Obama ainda esteja sendo desenvolvida, ela inclui planos de uma reunião privada com dissidentes. No entanto, o foco de sua viagem deve ser outro. Depois de fazer uma série de aberturas no embargo comercial a Cuba, o governo Obama se prepara para acabar com alguns dos limites remanescentes mais importantes no turismo entre EUA e Cuba e nos negócios com a ilha. Durante sua visita entre 20 e 22 de março, o presidente pretende fazer história participando de um jogo de exibição da Liga Principal de Beisebol, indo a uma reunião com Raúl Castro e se dirigindo aos cubanos ao vivo na televisão estatal.

Cruz, senador americano do Texas, cujo pai saiu de Cuba, considera um erro a política de Obama. "Acho que o presidente deveria estar incentivando uma Cuba livre", disse no mês passado.

Para Rhodes e outros membros da administração, o impulso para fazer com que os cubanos tenham mais controle sob suas vidas se concentra em melhorias econômicas. Em um ano e meio desde que Obama e Castro anunciaram que iriam normalizar a relação entre EUA e Cuba, Obama autorizou voos diretos entre os dois países; afrouxou drasticamente as restrições às viagens para a ilha; permitiu o comércio com empresas estatais cubanas e liberou às companhias dos Estados Unidos a venderem a Cuba uma grande variedade de produtos a crédito, o que antes era proibido.

Cuba abriu dezenas de conexões Wi-Fi públicas, aumentando o acesso dos cubanos à Internet, e recebeu eventos culturais, tais como um show do DJ de música eletrônica Diplo na semana passada e um dos Rolling Stones, no final deste mês.

"Cuba está muito mais conectada ao mundo do que antes. A única coisa que vai mudar a vida do povo cubano ainda mais para melhor é a evolução da economia da ilha.", disse Rhodes.

Esses argumentos não importam tanto para mulheres como Ivoiny Moralobo, ex-cabeleireira, que deixou seus dois filhos com sua família no domingo para marchar com o grupo dissidente Damas de Branco ("Ladies in White", em inglês). As marchas iniciaram em 2003, quando esposas e mães de presos políticos foram clamar publicamente pela libertação deles.

O grupo foi dividido por rivalidades internas nos últimos anos e é visto com ceticismo por muitos cubanos, especialmente por usar fundos de doadores estrangeiros – muitos anti-Castro emigrados para os EUA pagam US$ 30 por mês a cada manifestante, mais do que a média de salário cubana.

Assim que ela se sentou na rua fora da Igreja de Santa Rita, Moralobo foi levada por policiais mulheres até um carro da patrulha. Sua bolsa foi confiscada e ela ficou presa em um prédio vazio de uma escola por oito horas até ser abandonada a três quadras de sua casa em Havana, contou à Associated Press. Ela afirmou que não recebeu água mas que a polícia lhe ofereceu jantar, o que ela recusou.

A Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (grupo não governamental) disse que houve 8.816 detenções temporárias em 2015, pouco menos do que as 8.899 de 2014.

Ativistas dizem que muitas detenções são violentas e incluem espancamentos pela polícia. Eles dizem que o comportamento abusivo é mais comum nas províncias do leste do país, longe da imprensa internacional e dos diplomatas. O governo cubano diz que tais alegações não fazem sentido.

O que está claro é que os dissidentes não têm construído uma base ampla de apoio em grande parte do país e, muitas vezes, se deparam com críticas.

"É difícil enfrentar isso todos os domingos. Por que elas perturbam nossa paz? Elas gostam de ofender. Deviam ter algum respeito por nós", disse Aleida Gonzalez, funcionária de um café, enquanto observava Moralobo e outras Damas de Branco serem presas do lado de fora de sua casa.

Francisco Jara-9.ago.15/AFP
Dissentes do
Dissentes do "Damas de Branco" protestam contra reabertura da embaixada dos EUA em Cuba

Até os especialistas simpáticos às queixas mais amplas das dissidentes reconhecem que eles têm lutado para se conectar com os cidadãos comuns, especialmente no último ano, marcado por muitas mudanças.

"As dissidentes têm o desafio de irem além da denúncia, apresentarem propostas e ficarem mais perto de compreender e oferecerem soluções para os problemas diários básicos das pessoas, especialmente agora que há mais espaço e um novo ambiente para negociações", disse Ted Henken, acadêmico do Baruch College, que acompanha de perto os movimentos da sociedade civil cubana e apoia a política de Obama.

Um pequeno grupo de dissidentes anunciou nesta semana o lançamento de um novo esforço para persuadir Cuba a abrir seu sistema eleitoral. Ao invés de desobediência civil, requereram às autoridades.

Os membros da associação de grupos dissidentes de longa data e advogados e profissionais menos conhecidos disseram ter enviado uma carta ao parlamento, controlado pelo governo, com exigências de mudanças que vão desde permitir a existência de organizações civis independentes a legalizar outros partidos políticos no poder.

"É preciso haver mudanças", disse o organizador Amado Calixto.

"Achamos que o país está pronto.", completou.

Tradução de MARIA PAULA AUTRAN


Endereço da página:

Links no texto: